terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O ano vai morrer aberto em mim


Sou um sujeito cheio de recantos.
Os desvãos me constam.
Tem hora leio avencas.
Tem hora, Proust.
Ouço aves e beethovens.
Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin.

O dia vai morrer aberto em mim.

(Manoel de Barros in Livro sobre nada p.31)


janela para julho, por Sergia A.


Foi um bom ano. Palavras que se apresentaram nas redes sociais nos últimos dias. Com algumas alternâncias de adjetivos, nunca contraditórios. Então me peguei pensando sobre os dias que 2014 levou, sem os traços impositivos das mídias que nos guiam. Para não ceder ao meu jeito otimista de ser, precisei listar de um lado os que acordaram tortos e um tanto acinzentados, e de outro os que me pareceram retos, imponentes e positivos. Racionalmente separados. Um balanço. Examinei-o. Que coisa sem poesia! Sacudi, virei tudo de cabeça para baixo só para desregular.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

A paisagem e o alento



Uma pequena ponte, uma lâmpada, um punho,
uma carta que segue, um bom dia que chega,
hoje, amanhã, ainda, a vida continua,
no silêncio, nas ruas, nos quartos, dia a dia,
nas mãos que se dão, nos punhos torturados,
nas frontes que persistem,
nós somos,
existimos.


António Ramos Rosa, in Nós somos (Sobre o Rosto da Terra, 1961)


A água, por Sergia A.



A água espirra sobre o meu rosto. Desperta-me. Crianças em correria em um parque aquático. É dezembro. É verão. Aproxima-se a data maior para aqueles que se dizem cristãos. Os sotaques. As aparências diversas. Observo-os com atenção. Uma camiseta de identificação os distingue. Minha pequena companhia se anima com a alegria que deles emana. Tenta uma aproximação. Diverte-se. Divertem-se. Ali, unidos pela água como se fossem irmãos. Converso por alguns segundos com o jovem monitor que os acompanha. Despedem-se. Há muito o que percorrer até o fim do dia. Deixam comigo um alento à minha teimosa esperança.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A substância do pensamento



Essas duas formas de pensar, uma do tempo e da
história, outra atemporal e eterna, são partes do esforço
do homem de compreender o mundo em que vive.

(J. Robert Oppenheimer in Science and the Common Understanding
citado por Marcelo Gleiser in A Ilha do Conhecimento p.285)


O arco e a torre, por Sergia A.


Fui ao seu encontro. Ela me chama sempre que preciso. Lê minha alma. E antes que uma palavra se articule, ela me olha nos olhos e diz: ninguém disse que seria assim de mão beijada, como se dizia no lugar onde nasci. Nada cai do céu. E a chuva que escorre no meu telhado? Provoco. Antes dela, formam-se nuvens que não suportam o próprio peso, responde com suavidade e convicção. Adoro ouvi-la. Mistérios de um pensamento que se forjou na labuta de anos. Invejo a sua serenidade. 

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Geometria da luz



a forma a cor, por Sergia A.


Sobre a rocha
a forma
memória em ondas
que flutuam sobre o nada
o risco
a marca
o caminho
 o tempo que transborda



Em Guimarães-PT, 22/09/2014

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Advento IV


Somos filhos da época 
e a época é política. 

Todas as tuas, nossas, vossas coisas 
diurnas e noturnas, 
são coisas políticas. 

(Wislawa Szymborska, in Filhos da época – Poemas p.77 – trad. Regina Przybycien) 


A água, por Sergia A.


Novembro é lindo! Vivo repetindo pelos cantos. Ecoam trovões para afugentar o calor das tardes infernais. Isso, por si só, já me basta. Sem prejuízo das razões cantadas em outros novembros. Assentada a poeira, posso aspirar o cheiro do ar ainda úmido. Descobrir nas nuvens as nuanças do cinza. No intervalo entre uma palavra e outra fechar os olhos e sonhar.

No entanto, há no ar de novembro mais que o cheiro exalado pelas gotas que molham a terra seca. Inconformados com os rumos que o país deseja seguir (demonstrado nas urnas) golpistas mancham as ruas destilando um ódio gratuito. Vermelho vira cor proibida. Dobrar à esquerda um atentado ao pudor. Enquanto os derrotados, cegos de desejo, flertam com o fascismo na tentativa de abocanhar o que, por direito, não é seu. 

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A culpa é do verão



It's not whether you win or lose, it's how you place the blame

(Oscar Wild, retirado de The Wild Wit of Oscar Wilde)



sol do equador, por Sergia A.


Foi só terminar a apuração, começou a zoeira. Eleições polarizadas. Divisão. Culpa daqui. Culpa de lá. Twitter. Passagens para Miami. Facebook. Xingamento. Xenofobia. Instagram. Grosseria. Piadas. Um escarcéu. Ah! Eu precisava, urgentemente, de uma tela em branco... As teclas ali, ardendo entre meus dedos... A sonoridade da palavra zoar... o telefone toca...  Ela (uma eleitora indecisa) me conta uma historinha. Pronto. Nada melhor que a ficção para afastar maledicência:

Noite de domingo. Ela, aflita em frente a TV, toma um gole de água. Horário de verão. Três fusos dividindo o país e adiando o resultado da eleição. Um canal de TV a cabo. Comentaristas a postos. A Rede G. se afirmando porta voz do desejo nacional. Em jogo o sonho de um país moderno. Liberal. Credibilidade para o capital financeiro retornar. Nos intervalos, o sobe e desce do dólar. A bolsa de valores em queda. O país precisa crescer, repetiam em tempo cronometrado para convencer a audiência.

19h. Horário de Brasília. Computados os votos do centro/sul/sudeste. Divulgação oficial não liberada. Explicava em tom professoral, a cada segundo, a Sra. R.:
- O norte ainda vota. O nordeste está encerrando. 

A tela aberta esperando dados prometidos para as 20h de Brasília. Afundada na poltrona, Ela percebe uma agitação na bancada. A câmera desvia para votos de governador. O Sr. M. desaparece. Retorna com um semblante mais sereno. Talvez tenha ido ao banheiro, Ela pensa. Acentua-se a ênfase no Brasil moderno. Ela tem um pressentimento. Pega uma maçã. Precisa mastigar. O sr. M. não se contém e dispara:
- O Sr. F. e o Sr. G. estão se dirigindo ao aeroporto rumo a BH. Não sei que informação tiveram. 

domingo, 26 de outubro de 2014

Diálogo com o universo






Viagens! Não vivo sem elas. O jeito mais eficaz e indolor de alterar pontos de vista. Essencial para não ficarmos presos ao que nos convém. Inevitável. Na volta nunca somos os mesmos. Da última, uma revolução aqui dentro... Ideias a mil... Sabe aquela história de que a pátria é a nossa língua? Pois é, foi o que me confirmaram as ruas, os museus, as bibliotecas, as livrarias de Lisboa e de algumas cidades históricas do norte de Portugal.

Aqui, uma das preciosidades da minha bagagem de volta. Direto de uma mostra sobre o poeta e tradutor português Antonio Ramos Rosa, que tive a graça de visitar. Agora está ali, entre tantos, se avolumando na mesa de cabeceira. Esperando cada um a sua hora.

domingo, 19 de outubro de 2014

Geometria da descida



Imagem gentilmente cedida pela fotógrafa Edilene Facundes



No fim de uma escada
em sombra quedam-se as formas:
porta para o nada?

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Sob o céu de imortal claridade



Para descrever as nuvens 
eu necessitaria ser muito rápida – 
numa fração de segundo 
deixam de ser estas, tornam-se outras. 

(Wislawa Szymborska in Nuvens, poemas p.103
tradução: Regina Przybycien) 



 Além do árido sertão, por Sergia A.


Trago comigo uma estranha mania. Olhar para nuvens. O vagar ligeiro. O passar carregado. Não importa: aprecio. Observo. Faço anotações. Enquanto elas seguem seu rumo sem se dar conta da minha existência simplória. Mania, talvez, de quem nasceu nos grotões (para usar palavra da moda) “sob o céu de imortal claridade” (para usar palavras do poeta, que dão corpo ao hino). Faz parte de mim. 

Às vezes elas afetam meu humor, devo confessar. Ficam por aqui remoendo. Atiçando minha busca por serenidade. Divago por outros céus. E as formas se multiplicam aqui dentro, ao sabor do vento. É assim que esse blog se movimenta. Não há pretensão de retê-las em descrições. Apenas deixar que se vá a tormenta. E elas se vão, caprichando em novos arranjos para me confundir. Ou, para me dizer que as formas não se encerram em si mesmas. Talvez, por isso pareça-me estranho e provocador acordar aprisionada em uma forma única.

sábado, 4 de outubro de 2014

Tempo de promessas II



Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, 
Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem. 

(personagem de José Saramago in Ensaio sobre a cegueira p.310)



Recado na parede (em Lisboa, Portugal)


Calei-me por um tempo. Contentei-me em observar. Voei para fugir do desencanto. Ausentar-me. Ver de longe. Caminho entre ruelas estreitas de cidades medievais. Caminho entre modernas alamedas arborizadas. Caminho ao longo de largas avenidas e seus viadutos. Um recado na parede surge diante da minha lente. Providencial para esse tempo de ouvir um ruidoso falar.

De volta, não escapo da tristeza pela obrigação de votar. Entristeço-me por essa tristeza. Desejo o prazer da escolha, mesmo que o tempo pareça seco. Revejo, facilmente, uma noite interminável que não merece retorno. E a secura de que hoje reclamo é, talvez, fruto da ansiedade de quem vive de sonhos. Da certeza de que há muito por fazer para vê-los realidade.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Último dia de verão



Enquanto ela dormia, por Sergia A.

Sobre o corpo cansado 
pesavam as vestes 
intumescidas
o torpor da tarde
a fadiga o deslize
despidos
entre a lâmina fria 
de um espelho e o limo.

Atravessando estações
flutua o gesto 
em curvas 
esculpido.


(Solar de Mateus, 21/09/2014)

sábado, 6 de setembro de 2014

Tempo de promessas



Elas chegam de repente, carregando de promessas a minha janela. Tenho certo gosto por elas. Dão um rosto novo às tardes estorricadas de sol. Eis que ele se impõe, em cores deslumbrantes, roubando a cena com ares de mistério. Um carro de som, repetindo clichês de ontem, quebra o encanto da tarde. Gotas inevitáveis escorrem pelo vidro.  Oh! tempo seco o que vivemos!

 
janela para o arco-íris, por Sergia  A.


O arco bebe a chuva
ante a janela aquecida
de raios em fuga.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Éramos seis (parte II - O risco das pedras)


may my heart always be open to little
birds who are the secrets of living

(E. E. Cummings in Selected Poems p.49)


arlequim sobre pedras, por Sergia A.


Percorrer os caminhos de uma festa literária, alguém me alerta, é correr riscos incalculáveis. Por pura teimosia decido me aventurar. Eis alguns que consigo listar:

É correr o risco de margear, entre ciclistas e caminhantes apressados, um espelho d’água que te devolve os raios da manhã. De cruzar arcos de concreto entre bandeiras esvoaçantes. Alinhavar passos entre ruas estreitas. Torcer para que um céu azul alivie a lisura das pedras. Trocar saltos elegantes por emborrachados de bico arredondado. Enlouquecer diante da programação que não se alcança. É correr o risco de acender uma centelha a cada tropeço, e descobrir um universo que explode ali do lado impunemente.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Éramos seis (Parte I - do início)


(...) há essência nas substâncias criadas intelectuais, nas quais
o ser é outra coisa que essa essência, embora tal essência  seja sem
matéria. Por isso o ser delas não é absoluto, mas recebido: donde
também, limitado e finito, conforme a capacidade da natureza recipiente.

(S. Tomás de Aquino in O Ente e a Essência p.84, trad. D. Odílio Moura)


 
A janela o café, por Sergia A.
 

Sim, estou me apropriando do título de uma novela que eu adorava. Assim como a novela se fez a partir do romance de Maria José Dupré (1943), que não li. Irmãos descobrindo o ser, sob a batuta de uma mãe zelosa. Sim, somos irmãs (se o termo significar ligação profunda). Arrebanhadas pela vida. Ao invés de sangue, temos sonhos comuns. Um deles nos traz até aqui. Estamos na nova ala de embarque do JK. Somos quatro direcionando o olhar ao longo corredor em busca da quinta. Ponho a jaqueta. O dia desperta frio. O café alimenta o tempo de espera. Espremida entre assentos de um avião a alegria juvenil. Somos cinco.

A chuva encobre parcialmente a beleza do cartão postal. O táxi nos abandona diante da escadaria de um prédio antigo. Os degraus se prolongam com o peso da mala. O cabelo se desmonta. Por instante sinto falta do profissionalismo da recepção de hotel, cuja impessoalidade decidimos evitar. A janela salva o dia. Em meio ao desespero, somos olhos embevecidos. São três horas da tarde. Somos seis ao redor de uma mesa de um bar antigo. José de Alencar é pouso para pombos. Getúlio em seu leito de morte, logo ali. Um chope para aproximar a sétima, cuja graça dispensa qualquer esforço. Aceitamos o convite perfeito para dia de chuva. Somos sete em uma alegre sala de estar. Um café, boas risadas, uma morada que respira arte abrindo portas para o abrigo de duas com passado comum. 

domingo, 10 de agosto de 2014

Das sementes



em movimento, por Sergia A.


Ali, entre milhões,
uma seguiu enlouquecida:
eis-me aqui, embrião.


P.S.:  Feliz dia dos pais!

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Decifrando enigmas entre rabecas e pífanos



Assim, aos poucos, ia se formando no meu sangue 
o projeto de eu mesmo erguer, de novo, poeticamente, 
meu Castelo pedregoso e amuralhado. 
Tirando daqui e dali, juntando o que acontecera 
com o que ia sonhando, terminaria com um Castelo 
afortalezado, de pedra, com as duas torres centradas 
no coração do meu Império.

(personagem Quaderna, de Ariano Suassuna, in O Romance d’Pedra do Reino p. 115)


flores sobre argila, por Sergia A.


Não havia teatro no lugar onde nasci. Falo do espaço físico e da arte dramática nos moldes clássicos. Assim se falava. Havia os livros. Havia os dramas e as comédias de circo. Sob a lona ou nas feiras sobre rústicos tablados. Não havia hotéis. Quando alguma coisa a mais acontecia as famílias hospedavam parentes e amigos, e os amigos dos amigos.

Eu ali no quarto que era de todas. Pequena, admirando a altura de sua beleza reluzente. Ela fazia parte da trupe. Ela se olhava no espelho. De repente, me olha. Conversa comigo. Diz-me que vai encenar Auto da Compadecida. Não fazia a menor ideia do que se tratava. Estranho mesmo era o nome do autor. Ela repetia. Pacientemente ia se esquivando da minha curiosidade. Ficou o nome esquisito, repetido até convencer de que não faltava nenhuma letra: A R I A N O. A peça foi encenada em lugar arranjado. Talvez o salão paroquial. Não lembro. Não me permitiram ver. Ficou um nome rondando enquanto eu tomava gosto pelas palavras. Surgiram outros títulos esquisitos para livros (O santo e a porca, O homem da vaca e o poder da fortuna). Uma estranheza que se reconhecia nas feiras da minha cidade.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Lamento


Acordo. Gesto automático. Ligo a TV. Chamas...
À mão, um caderno antigo:


Lágrima, por Sergia A.


quinta-feira, 10 de julho de 2014

A resposta do espelho


A imagem
que de mim
fiz
para mim

cortei-a na minha 

propria carne

cicatrizes

se rompem
quando cresço

(Hans-Curt Flemming in Autorretrato trad. Rui Rothe-Neves)


O tempo da flor, por Sergia A.


Amanhece. Um raio de sol insistente invade as frestas da minha janela. Por trás dela, um céu azul com poucas nuvens. Levo a mão ao peito em um gesto instintivo. O coração voltou ao ritmo normal e uma folha em branco me seduz. As palavras me visitam, não para chorar o leite derramado ou encontrar culpados. Não para cantar o entusiasmo da copa das copas ou ceder à tentação de rir do fracasso da previsão de caos. Talvez, queiram apenas dar forma a novas questões que nascem do muito que se viu.

O esporte tem seus caprichos. Talvez, o mais instigante deles seja a eminênica da derrota. Para todo vencedor, um perdedor. No entanto, a primeira coisa que me vem, é o impulso de fazer distinção entre o que está fora e o que está dentro dos campos, para que se veja com clareza e sem fanatismo uma natural associação, ou não. Uma coisa é o desafio de organizar um evento desta magnitude. Outra é o desempenho da seleção do Brasil na competição. Sobre a organização, devíamos ao mundo e a nós mesmos a alegria de viver intensamente esta festa. Há uma razão simples: o futebol é unanimidade em toda a extensão continental do país, perpassando sua grande diversidade cultural. Parece que isso fala muito da imagem que tínhamos de nós mesmos quando da decisão. Assumir o risco de se expor faz parte do ato corajoso e necessário de olhar para si. 

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Caderno antigo


Enquanto o mundo se dá conta de que rola nos campos mais do que uma bola, eu aqui limpando gavetas:


Branco sobre fundo verde e vermelho, por Sergia A.


Há um poema à minha espera, na página em branco que a mente abriga. Tambores dão o tom de sua presença. Nas valas escuras abertas entre calçadas. Nas ruas sem rumo, nos becos repetidos.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Eu chamo amor



Amizade é amor sem clausula de exclusividade,
e sem a ditatura da libido.

(Zuenir Ventura, em entrevista a Roberto d’Ávila - Jun/2014)



Perdoem-me os amantes, mas hoje quero celebrar a amizade. Como se não bastasse a abertura da Copa 2014 nesta data, né? Não que eu ache o futebol ou a amizade incompatíveis com o fogo das paixões. Bobagem. O coração (o romântico) dá o seu jeito. Mas, é que por esses dias vi de perto uma demonstração que me tocou lá no fundo. Sabe aquelas que confirmam os versos do Milton? Pois é... e aí, remexendo gavetas, encontrei um texto escrito há alguns anos, sob efeito de um encontro. Em nome disso, que eu chamo amor, decido publicá-lo com alguns ajustes (não sei reler sem modificar):

Achados, por Sergia A.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Verde-amarelo utópico



Hey you

Don´t tell me there´s no hope at all
Together we stand, divided we fall.

(Roger Waters in Hey You)



janela para junho, por Sergia A.


Se eu fosse o poeta diria que a tarde estava competente para o mergulho das andorinhas. Sobre cores, a leveza do vento a dissolver nuvens e a balançar tímidas bandeirolas. No entanto, junho, que sempre me pareceu risonho, deu pra se anunciar assim carregado de incertezas. As manchetes semeiam o medo em letras garrafais. Há um túnel, dizem os comentaristas políticos de plantão. Dele poderão sair borboletas esvoaçantes ou a carga pesada de um trem. Tudo isso enquanto permito que o entusiasta que mora em mim pinte de verde-amarelo minha janela. 

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Sobre histórias que contamos a nós mesmos


Bato à porta da pedra.
- Sou eu, me deixa entrar.
Não busco em ti refúgio eterno.
Não sou infeliz.
Não sou uma sem-teto.
O meu mundo merece retorno.
Entro e saio de mãos vazias.
E para provar que de fato estive presente,
não apresentarei senão palavras,
a que ninguém dará crédito.

(Wislawa Szymborska, in Conversa com a pedra
Poemas p.33, tradução Regina Przybycien)



Verde sobre fundo desfocado, por Sergia A.
  

Ele achava que sua vida toda fora um quase. Quase ganhara uma bolsa de intercâmbio, quase se formara em medicina, quase ganhara um concurso de contos, quase vivera um grande amor, quase, quase vira o seu país encontrar a terceira via finalmente. Assim quase sempre, quase lá. Por um ponto, por um ano, por meio ponto, porque o trem partiu antes da hora e o destino não lhe deu tempo de abrir a porta, porque as elites (internas e externas) reagiram ao incômodo. Entre quases, descobriu sua verdadeira vocação: cultivar Ses. 

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Madrugada



Já não há mãos dadas no mundo
Elas agora viajarão sozinhas.
Sem o fogo dos velhos contatos,
que ardia por dentro e dava coragem.

(Carlos Drummond de Andrade in Mas viveremos, A rosa do povo p.167)

 
 
Do outro lado, por Sergia A.


Atrás do vidro, a rede de proteção. O anteparo ao salto para a luz que se dilui no asfalto. Antes que se complete a acrobacia. Atrás do vidro, linhas se cruzam e se apagam na luz refletida. Da rua pontos flutuantes iluminam páginas adormecidas. 

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Pensamentos bobos às vésperas do dia das mães


Repetir repetir – até ficar diferente
Repetir é um dom do estilo.

(Manoel de Barros, in O livro das ignorãças p.11)


página de Poeminha em Língua de Brincar, Manoel de Barros


Dizem por aí que as meninas de hoje tem avós modernamente prendadas. Daquelas que tiveram poucos filhos e aprenderam conciliar profissão e trabalho doméstico, sem traumas. Entre outras competências, nas horas de folga, sabem agradar maridos, filhos e netos com bolos, doces e pratos gourmet. Modelos de mães, dedicadas e perfeitas como queriam as campanhas publicitarias antes de serem atropeladas por outras gerações, em que pais e mães se aglutinam na construção de novos papeis na relação com os filhos.  

Desse tempo restaram trágicas lembranças. Às vésperas do dia das mães, os anúncios de TV me provocavam urticária. Ai de mim que nasci com o estranho mal de escavacar palavras no teto, e às vezes, muito raramente, enxergar quando lhes brotam asas. Ai de mim que nasci com o estranho mal de enxergar formas e tons nas nuvens, quando apenas sua alvura é aparente. Aí de mim que nasci para inutilidades e sem talento para agradar.  

quinta-feira, 1 de maio de 2014

O brilho do sol - uma atualização



Das coisas que nos movem:
O texto abaixo foi postado em 20/04/2014 às 12h58. Eis que, uma semana depois, recebo uma mensagem fazendo menção ao poema citado na epígrafe. Nela, um link para um video em que a Camerata Antiqua de Curitiba executa "Renova-te", uma composição de Dimitri Cervo para o mesmo poema.

Encantada, agradeço ao compositor a gentileza do compartilhamento de sua obra. Publico-o novamente, acrescentando esse novo olhar, por entender que o poema ganha vida nova. O renovar-se passa a ser bem mais que um apelo que ganha forma no arranjo de palavras da poeta, e no deLírio das minhas.


* * *

Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica-se os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas. 

(Cecilia Meireles in Cântico XIII, livro Cânticos)



Stonehenge,  por Sergia A.


Domingo de Páscoa. Nuvens, lá fora, encobrindo mansamente o brilho do sol. Uma lembrança se instalando aqui dentro, de repente. Um céu cinza. Gotas finas e novamente uma estrada. Como se isso fosse novidade em uma viagem pelo interior da Inglaterra. No entanto era sim novidade o roteiro daquele dia. O lugar e o arrepio que me corre pelo corpo pra me dizer: sim estou aqui. Pisando o solo e contemplando um templo que guarda segredos ancestrais. E a imaginação seguindo o rodopio do vento.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Filhas de abril


linhas no varal, por Sergia A.


Agora já não reclama o seio. Nem do meu colo esvaziado brotam acalantos. Agora é voo que não alcanço. Tomando asas no vento de outro abril. 

terça-feira, 1 de abril de 2014

Antony and Cleopatra e o Haiti


CLEOPATRA:
Nay, ‘tis most certain, Iras, Saucy lictors
Will catch at us like strumpets, and scald rhymers
Ballad us out o’tune; the quick comedians
Extemporally will stage us and presente
Our Alexandrian revels; Antony
Shall be brought drunken forth, and I shall see
Some squeaking Cleopatra boy my greatness
I’th’ posture of a whore.
 [1]

 (Shakespeare in Antony and Cleopatra – Act V, Scene 2)
 
Dissonantes?  por Sergia A.
 
Acordamos cedo e partimos. Coração expandindo o peito dividido entre a felicidade daqueles dias e a ansiedade de voltar pra casa. Um turbilhão de sentimentos em cada curva da estrada que nos conduz a Stratford-upon-Avon. Último pouso daquela temporada. Chuva e um sol tímido se alternando no vidro da janela. Os olhos, mergulhados na atmosfera dourada do outono, não dão conta do tempo. Um teatro à nossa espera. Um sinal. Apagam-se as luzes laterais. Ilumina-se o palco. A percussão do britânico de origem nigeriana Akintayo Akinbode acende a curiosidade. Cantos e passos afro-caribenhos despertando espantos.
Sim, por mais espantoso que possa parecer, o Haiti é aqui. No cenário. No figurino. Na música que intercala cenas. Na pele propositadamente não embranquecida de Cleópatra. Um salto de espaço e tempo. Trocam-se as areias do Egito antigo pelas praias de Saint-Domingue no século XVIII, às vésperas da rebelião. Uma ousada moldura para o texto original que se adapta mas não se altera. Romanos e egípcios divididos entre o amor e a guerra, a conquista e a humilhação imposta ao conquistado. A morte como redenção. Uma moldura para o pensamento provocante do diretor norte-americano Tarell Alvin McCraney que dividiu críticos e amantes da obra de Shakespeare.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Sem tempo ou lugar


- Alguns patos dizem que a gente vira anjo e fica
sentado numa nuvem olhando para a Terra lá embaixo.
- Pode ser – a morte sentou-se – , afinal asas vocês já tem.
 
(Wolf Erlbruch, in O pato, a morte e a tulipa – Trad. José Marcos Macedo)
 
 
 
Sobre o teclado, por Sergia A.



Há algum tempo não ouvia a angústia na sua voz. E eis que o telefone soa no meio da noite. Sou ouvidos. Uma frase, arrastando-se entre sussurros, indaga: Para onde vai minha energia quando a energia acaba? E continua tecendo arremedos sobre interrogações e pontos finais. Atordoada, imponho-lhe um exercício de respiração. Desperto-me. Desperto-a. Cansada de parágrafos longos, vírgulas e reticências, ela deseja um verbo intransitivo. Nem mesmo adjuntos. Um ponto final, talvez. Procuro no meu dicionário um argumento para dar corpo à oração. O pensamento (nem sempre tão racional) me guia para a natureza que me rodeia. Nada desaparece. Tudo se transforma. À noite, se segue o dia. Ao inverno, a primavera. A semente rebenta para o broto germinar.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Longe é um lugar que existiu


 
Mar perecido, por Sergia A.
Montagem sobre poema de Helena Kolody
in Poemas do Amor impossível p.105
 
   
Escrever sempre foi para mim uma forma de me sentir viva. Tanto nas fases de eufóricas certezas quanto naquelas em que só as lágrimas nos entendem. Escondia os pequenos escritos, com medo do desvio que podiam revelar. Muitos foram queimados, outros se dissolveram nas gavetas mofadas. Por esses dias encontrei, por acaso, um pequeno caderno junto com antigos cartões postais.  Do tempo em que uma alegria carregada de esperança chegava em linhas que vinham de muito longe. Passei a limpo. Amassei. Decido publicar. Já não tenho medo do escuro. E, talvez, já não tenha idade para brincar de esconder...

segunda-feira, 10 de março de 2014

sexta-feira, 7 de março de 2014

O corpo que sou

Existe alguém em nós
Em muito dentre nós esse alguém
Que brilha mais do que milhões de sóis
E que a escuridão conhece também
Existe alguém aqui
Fundo no fundo de você de mim
Que grita para quem quiser ouvir
 
(Caetano Veloso in A luz de Tieta)

Nu deitado, Di Cavalcanti
Óleo/madeira 82 x 100 cm (1930/1935)
Fonte:  site do Museu Castro Maya - Rio de Janeiro



Nasci em meio a mulheres extremamente fortes. Reza a lenda que, dentre elas, fui a única a vir ao mundo com assistência de um médico. De qualquer modo, havia no quarto uma parteira e outras mulheres para dar garantia. Uma tomou-me no colo e derramou sobre meu pequeno corpo o primeiro cuidado. Com a ausência da figura paterna, fui educada para ser forte. O manto e o alimento chegavam por mãos femininas. E isso era tudo. O ser forte se estendia da independência financeira à fronteira dos afetos. A posse do próprio corpo, por exemplo, ali não tinha lugar. Não escapava à construção cultural do espaço e do tempo. Ser forte era preservá-lo para uma abençoada proteção masculina.

Descubro tempos depois que ser forte também significa desconstruir, sempre que necessário. Sim, eu sou um corpo. E pensar o corpo como domínio do eu, surge como necessidade quando vejo na mídia a repercussão sobre o caso das camisetas com apelo sexual, fabricadas pela Adidas para a Copa 2014 e postas à venda pelo seu braço Americano. Do caldeirão de discursos moralistas, saltam palavras e pontos de interrogação para instigar minha mente. O que a estampa diz sobre nós (mulheres brasileiras)? De onde vem mesmo essa imagem que tanto nos incomoda? 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Pensamentos bobos às vésperas do Carnaval


Se acaso meu bloco
Encontrar o seu,
Não tem problema,
Ninguém morreu.
São três dias de folia e brincadeira,
Você pra lá e eu pra cá,
Até quarta feira.

(Marchinha de carnaval Até Quarta-feira)


O amarelo e o lilás, por Sergia A.



Um dia desses uma amiga me disse que o primeiro grande impacto percebido depois da separação foi a quantidade de tempo que sobrou pra ela. Assim mesmo, "sobrou", porque em um relacionamento o cuidar de si mesmo parece se submeter sempre ao tempo dos dois. Meses depois outra amiga, entusiasmada por organizar sua nova vida a dois, se desculpou pela falta de tempo, dizendo que quando tivesse o seu tempo privado de volta... E eu pensei, mas não tive coragem de dizer, que ela esquecesse essa história de tempo privado. É natural. Um projeto a dois tende a absorver todo o tempo do um.

Aí, chegam aquelas ideias bobas chacoalhando o pensamento, embaladas por uma antiga marchinha de carnaval. Do tempo em que o compromisso de namoro era suspenso por três dias para preservar a individualidade nos dias de folia. Na quarta-feira, quando se desfazem as fantasias, tudo pode retomar o seu lugar. Afinal, na dura realidade das manhãs, a maioria das pessoas acredita ser apenas uma metade. O complemento está no outro, que precisa ser encontrado. O Mito do Andrógino explica bem essa busca por plenitude. Andróginos eram seres completos, parte homem parte mulher. Sua felicidade atraiu a fúria de Zeus que os cortou ao meio. Incompletos são condenados a procurar eternamente a totalidade perdida. 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

De passagem


Esse mundo não é meu
Esse mundo não é seu.
 
(Arnaldo Antunes/Branco Mello in Eu não sou da sua rua)

 


Quintal, por Sergia A.


A chuva cai torrencialmente lá fora. Ligo a TV e desligo em um segundo. Incomoda-me a mesmice exacerbante. Filósofos, antropólogos, sociólogos, juristas, jornalistas descobrindo palavras que acobertem suas visões. A polícia tem pressa em fechar o inquérito e vir a público justificar sua existência. Afinal o quarto poder foi duramente atingido e fala-se em cerceamento à liberdade de expressão. E eu aqui, que nada sou, fico ruminando. De perplexos passamos a inteiramente confusos. E o tempo continua prenhe de interrogações.
 
A esperança dá sinais de cansaço. Mortes, ônibus incendiados, patrimônio público e privado (bancos, principalmente) depredado a olhos vistos. E o que vemos choca. O que não vemos cochila nas estatísticas como resíduo que a desigualdade social nos impõe. Por que vamos às ruas com tamanha brutalidade? Que motivos nos levam ao enfrentamento se vivemos uma democracia?

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Quem tem medo de Sylvia Plath?

      
 Axes                                               
  After whose stroke the  wood rings
And the echoes!                              
Echoes traveling                             
Off from the center like horses.      

(Sylvia Plath, in  Words, 1963)  

Noite adentro,  por Sergia A.
                         

Vento forte no vidro da janela. Um céu nublado, trovoadas e Sylvia Plath ao meu alcance. Uma pequena seleção de poemas que me acompanhou na viagem de volta no ano passado. Meses depois a devoro aos pouquinhos. Como se faz com a porção de doce permitida nas dietas. Claro que posso abocanhar, no meio da noite, outras porções em websites a ela dedicados. Mas, não devo exagerar. Além disso, ainda gosto do cheiro de livro. É preciso tê-lo na mão para sentir o seu peso. Carregá-lo comigo como se aquilo tudo me pertencesse, ainda que por instantes. E aqui ele está, escorrendo por entre dedos como a chuva lá fora.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Do risco de submergir


a água
          surgiu tardia no universo
          quando o furor
          inicial
          da matéria se aplacou
          e deu vez
a coisas mais sutis
que apareceram
            como os tecidos vivos
                     as lentes de nossos olhos
                     os sonhos e os pensamentos
            que em última instância 
            da água nasceram

(Ferreira Gullar in A Água, Em alguma parte alguma p.85)

Caminho azul, por Sergia A.


Desejo. Vejo-o de cima antes do salto. O azul me envolve. Sinto uma vontade infantil de me benzer para quebrar o gelo e mandar embora a dor. Rio de mim mesma na solidão da minha raia. Sou fisgada pelo azul. Dou ao ar a liberdade de penetrar os meus pulmões. Mergulho. Entregue à sua fluidez deixo-me abraçar sem restrições. Gravidade controlada pelo volume que desloco vencendo sua resistência natural. O azul ocupa cada milímetro do meu corpo flutuante. Concentração e movimento. Eu comigo na travessia do mundo.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Uma cruz no coração da América



Aqui sentimos de maneira inequívoca a presença do tempo,
tão rara nestas latitudes. (...) Não se exigem datas nem nomes próprios; 
basta o que sentimos de imediato, como se fosse uma música. 

(Jorge Luis Borges, colônia do sacramento in Atlas, p.123 trad. Heloisa Jahn)





Tunel do tempo
 
 
Ao longe, uma mancha azul recortando o horizonte. Do alto, picos matizados de neve. De perto, um certo assombro. Os Andes me fascinam. Desde sempre, inexplicavelmente. Talvez não seja um sentimento comum aos nascidos na América de língua portuguesa. A cordilheira não nos impõe sua presença. No entanto, nos mapas que de cedo aprendemos a rabiscar, em documentários e livros que nos habituamos a ver, nos relatos que ouvimos dos viajantes, ela está lá exigindo reverência. Dá forma ao continente e silenciosamente nos afeta. Visitei-a apenas duas vezes. Dormi em um dos seus vales meridionais. Vigiada por altas muralhas rochosas, vulcões adormecidos e espelhos de águas mansas. Uma oportunidade de me entregar aos mistérios da natureza.

Mistérios. Talvez venha daí o meu fascínio. Os mistérios que ela esconde. Talvez venha daí o aperto que invade meu peito ao ver Beyond El Dorado – power and gold in ancient Colombia, em visita ao British Museum (Londres, Nov/2013). Uma bem concebida exposição de artefatos em ouro, pedras preciosas, cerâmica, couro e tecido produzidos por povos que habitaram a Colômbia antes da chegada dos conquistadores espanhóis. Belas e tecnicamente complexas as peças pertencem ao Museo del Oro de Bogotá, e boa parte são achados arqueológicos retirados de sítios localizados nos vales formados pelas três ramificações da cordilheira na região (que infelizmente não fez parte das minhas andanças).

domingo, 12 de janeiro de 2014

Janela para o Oeste


Concreto, por  Sergia A.


Enlouquecida, a cidade se estica no vidro da janela que já não alcança o fim do dia.