quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

das histórias que as paredes contam: as borboletas



Há diversas atitudes de se encarar o Natal,
Algumas das quais podemos desconsiderar:
A social, a indiferente, a estritamente comercial,
A ruidosa (os bares ficam abertos até meia-noite)
E a pueril – que não é a da criança
Para quem a vela é uma estrela, e o anjo dourado,
Cujas asas se distendem no topo da árvore,
Não apenas um enfeite, mas um anjo.

A criança se extasia diante da Árvore de Natal:
Deixemo-la permanecer no espírito de êxtase da Festa
Que é tanto um evento inaceitável quanto um pretexto;


(O Cultivo das Árvores de Natal, T.S.Eliot in Obra Completa Vol I p.227 - tradução: Ivan Junqueira)


árvores e asas, por Sergia A.


É dezembro sem chuva. Tarde morna e desanimadora. Visito-a depois de uma longa ausência. Ouço as dificuldades de sua progressiva imobilidade:
- Fizeram-me múltipla. De mim nascerem flores e borboletas. Eis-me novamente casulo.

Dezembro continua sem chuvas. Atravesso tardes mornas e desanimadoras. Recebo as três em pleno solstício de verão. Uma parede ganha vida nova. Trazem-me um pinheiro. Das velhas caixas saltam o vermelho e o dourado das bolas e anjos. O pisca-pisca de LED, ainda inteiro. De repente a do meio imposta a voz, para ser ouvida:
- acho que árvores precisam de borboletas.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Geometria do azul



azul em recorte, por Sergia A.


alongam-se os sólidos. reduzindo em forma o azul. [etéreo. indócil]. como se a vida, por inteiro, coubesse em seu invólucro.

presunção do insólito. reverso. confesso. desalinhando-se da extensão concreta do incógnito. 


[Brasília, 06/11/2015]



sábado, 21 de novembro de 2015

Cartas da Itália: Bolonha



Foto da Storia         
(a M. dopo la bomba) 

La città è diversa?
No, non è diversa
Ricostruiremo
quelle stanze
nella piazza dove eravamo
foto da Storia
per cinque ore
fianco a fianco
storditi o feroci
ripassando ci ignoreremo
Riapriremo la radio
Chi si buca ha detto
che forse smetterà
Siamo piú tristi
e non ce lo diciamo
I giornali dicono
che resistiamo
Della vita non bisogna
parlare mai

(Stefano Benni, in  Prima o poi/l'amore arriva p.99)


Bologna, 06/10/2015

Querida L.

Da saudade de ontem:
Estou novamente em um trem, por uma hora e quarenta minutos, em busca de um novo destino. Pela janela observo os campos verdes, arados em cada palmo. De vez em quando um túnel atravessa uma pequena montanha. E rapidamente elas se perdem no azul da distância. Outras vezes são rios de águas calmas, separando terras unidas por belas pontes, que nos dão passagem. Os trens regionais param bastante e isto pode parecer cansativo, mas é extremamente estimulante ver os rostos que sobem e descem, suas pressas, suas ansiedades, suas vidas que a minha imaginação começa a construir automaticamente. Mas, isso é só um jeito de dizer que sinto a tua falta, e de honrar o compromisso assumido. Nada mais inquietante, para mim, do que um texto iniciado. Logo, logo, quando meus pés sentirem o chão da cidade, ele se completará.


outra estação, por Sergia A.


Da saudade de hoje:
Então, estou de volta, disposta a eliminar a urticária que toma conta dos meus dedos. A cidade me conquista logo na saída do hotel, com uma rua dedicada aos poetas e com a arquitetura de suas galerias reveladoras da riqueza e do tempo. A cada passo preciso erguer os olhos abobalhados diante das marcas dos milênios e sentir o arrepio que percorre meu corpo quando este se dá conta de que por aqui viveram etruscos, celtas, romanos, até os cidadãos que a tornaram uma municipalidade livre em plena Idade Média. Ou, até formar essa onda alegre de estudantes apressados que nos atropelam com suas mochilas e fones de ouvido. Orgulhosos, talvez, de pertencerem a uma instituição fundada em 1.088 (consegues imaginar?), e que ostenta o título de universidade mais antiga do mundo.


a conquista, por Sergia A.

domingo, 15 de novembro de 2015

A cadeira vazia




E virá a companhia inglesa e por sua vez comprará tudo
e por sua vez perderá tudo e tudo volverá a nada
e secado o ouro escorrerá ferro, e secos morros de ferro 
taparão o vale sinistro onde não mais haverá privilégios,

(Carlos Drummond de Andrade, in Os urubus  no telhado, Claro Enigma p.97)




olhos nos olhos um minuto, por Sergia A.



O telefone toca. Entre soluços e sotaques ouço um sussurro no amanhecer:

se por aí o rio já não é doce e a lama reveste vidas e vales...
se por aqui a arrogância ver o outro como menor e não merecedor...
se a reação é violenta e a resposta é a guerra...
o que nos resta?

Inspiro. Sinto o pulmão se avolumar. Um raio de sol encontra espaço entre as persianas. Espio. Seu caminho corta o infinito azul. Expiro. Uma voz pausada toma posse de mim:

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Encontros infinitos



a fonte, por Sergia A.



Além do arco os arcos, em séculos de arcabouço, alinham sobre o claustro a luz. Marcos iniciais. Ou, pontos finais em reticências e interrogativos. Nomeiam encontros tardios e infinitos.


Além do arco os arcos, em eras sobrepostos, alcançam da fonte reclusa o néctar. Pontos de extensão. Ou, fractais do sagrado. Bíblico e pagão, na pureza do silêncio, entrelaçados.


segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Cartas da Itália: Veneza





Uma vez escrevi num prólogo Veneza de cristal
e de crepúsculo. Para mim, crepúsculo e Veneza 
são duas palavras quase sinônimas, mas nosso 
crepúsculo perdeu a luz e teme a noite e o de 
Veneza é um crepúsculo delicado e eterno,
sem antes nem depois.


(Jorge Luis Borges in atlas, p.31)



o grande canal, por Sergia A.



Veneza, 03/10/2015

Querida L.


Desta vez decidimos por uma hospedagem na vizinha Padova (Pádua) para fugir um pouco do burburinho turístico. Não que eu tenha alguma resistência a isso. Ao contrário, tenho plena consciência de que sou apenas mais uma a engrossar suas fileiras. E gosto de me sentir assim... apenas mais uma pessoa que deseja conhecer, avistar, ouvir o que tantos tem a me dizer. Estou convencida de que por mais que digam, algo se renova na minha experiência que será sempre única. 

Assim é que descer os degraus da estação Santa Lucia é um espanto cuja reação vem acompanhada de lágrimas. Sim, de lágrimas, como se o lugar exigisse do meu corpo uma adaptação natural ao seu meio. Palavras são incompetentes para descrever aquela visão do grande canal, o rumor das línguas que atordoam meus ouvidos, ou do ritmo engraçado do italiano gritado pelas portas e janelas, dos táxi/barcos velozes, do vaporetto em que se balançam e se misturam trabalhadores e visitantes, das gôndolas em preto e dourado (sim, elas existem e gondoleiros cantam canções apaixonadas). Não importa quantas vezes a cena tenha sido vista em filmes, documentários, fotografias de amigos. A cidade não se repete. É uma para cada dia e para cada um que por aqui aporta. Quando cessam as lágrimas, sou tomada pela sensação de ser personagem de um cenário encantado.


a gôndola, por Sergia A.

domingo, 25 de outubro de 2015

Risco


(…) Se me observo, “eu é um outro".

(Gaston Bachelard in Direito de Sonhar)



janelas na janela, por Sergia A.



ela na janela 
assume o risco de se ver
em outras janelas

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Cartas da Itália: Verona



Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou 
um retículo em cujos espaços cada um pode colocar as coisas que 
deseja recordar: nomes de homens ilustres, virtudes, números, 
classificações vegetais e minerais, datas de batalhas,
constelações, partes do discurso. Entre cada noção e cada ponto 
do itinerário pode-se estabelecer uma relação de afinidades ou 
de contrastes que sirva de evocação à memória. 

(personagem de Italo Calvino, in Cidades Invisíveis - trad. Diogo Mainardi)


o rio, por Sergia A.



Verona, 30/09/2015


Querida L.


Alugamos um pequeno apartamento para sentir os ares desta cidade por uns dias. Como em toda escolha, experimentamos o lado bom e o ruim. Carregar malas escadas acima foi a má surpresa da chegada: prédio sem elevador, mama mia! Por outro lado estamos, praticamente, às margens do Adige com duas belas pontes à nossa disposição para alcançar o centro histórico. Na primeira travessia recebi a graça de ser saudada por essa luz, que a câmera ligeira do iPhone tenta captar.


o amor, por Sergia A.


Como na cidade descrita por Marco Polo de Calvino, por aqui também cada um escolhe que relações estabelecerá entre espaço e memória. Muitos apostam no nome de Shakespeare, disputas de poder entre familias, amores belos por serem impossíveis para marcar a lembrança de sua passagem. Deixam seus registros no portal de acesso à residencia da familia cuja lenda inspirou o bardo. Para esses a 'Casa de Julieta' é parada obrigatória. Outros, sua história milenar, invasões, reconstruções, e as formas encontradas nos resquícios da arquitetura romana que a cidade preserva na grande arena e em seus subterrâneos. 

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Cartas da Itália: Santa Margherita Ligure



estação, por Sergia A.


"Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da
circunferência dos arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os
tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas
das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado."


(personagem de Italo Calvino em Cidades Invisíveis, tradução de Diogo Mainardi)


Santa Margherita, 27/09/2015


Querida L.


Encontrei um local de remessas postais como antigamente. Comprei cartões, e prometo que vou enviá-los. No entanto, vou continuar te escrevendo por aqui sempre que algo me toque a alma e consiga ser traduzido por palavras. Adorei ver vocês três juntinhas nas fotos. Pena que eu não estivesse aí para abraçá-las e ser um rosto a mais no cantinho que sobra.

Desde que decidimos que seria mais cômodo largar o carro em Milão, minha vida tem sido um sobe e desce de trens e mais correria pelas estações, com folgas de poucos dias nos lugares que queremos ficar. Santa Margherita é um deles. As cores, as águas, os passeios pela encosta, e os cheiros exalados pelas cozinhas me encantam. Embora seus desníveis sejam cruéis para pernas sem o hábito das ladeiras. Mas, como bem dizem as palavras que me guiam, não é só isso que faz uma cidade. 



encosta, por Sergia A.

sábado, 10 de outubro de 2015

A hora do meio



silêncio, por Sergia A.


A tarde se ergue em corredores silenciosos. Como resposta que não veio. Abrigando entre páginas do solitário labirinto os corpos perdidos. 

Escoltados pelo medo do inevitável encontro, jazem esquecidos de si mesmos. Esculpidos no vazio que se ergue entre corredores no meio da tarde.

domingo, 27 de setembro de 2015

Cartas da Itália: Como



Non parola orizzontale che sommerge,
ma il bianco dei margini, la pausa che
copre l’assenza tra te e me.


(Elisa biagini, in Da una crepe)


flores antes da montanha, por Sergia A.


Como, 24/09/2015


Querida L.


Alguns dias nos separam e já sinto enormemente a tua falta. Vejo-te em cada janela florida dos casarões medievais que estreitam as ruas desta cidade. Ou, nos Pinocchios que atraem meu olhar para as vitrines das pequenas lojas. Ou, ainda, nas meninas de cabelos pretos, de corte reto desalinhado pelo vento, velozes em suas bicicletas seguindo suas mamas/papas. Mas o tempo também é veloz. Logo, logo estaremos de mãos dados percorrendo livrarias. Agora é cumprir cada passo da jornada que nos distancia.

Pinocchio na janela, por Sergia A.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Da terra e do mar


Aos 
pescadores de Ali Hoca


Sou, mas não tenho que ser
filha da minha época

(Wislawa Szymborska in Elogio dos sonhos
trad. Regina Przybycien, poemas p.48)




o brilho do mar, por Sergia A.


porque julgou o mar 
gerar a vida
e sobre a fertilidade da terra 
vê-la edificada
à distância 
não a percebe mutilada.

do ventre agonizante
nega-se a acolher as sobras

em pequeno frasco
arrastado pelas ondas
sua voz propaga.

porque julga o mar 
gerar vida, em nova escala.


sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Sobre a vida dos pássaros



I shall keep singing!
Birds will pass me
On their way to Yellower Climes –
Each – with a Robin's expectation –
I – with my Redbreast – 

And my Rhymes –

(Emily Dickinson, 250 in E.D - Selected and Edited by Helen McNeil p.10)



pouso sobre a mesa, por Sergia A.


A tarde era de verão, com todos os atributos e significados para quem o espera por nove longos meses. Os raios douravam o verde das árvores e o branco das peles expostas sem recato. - Ao sol! - Aos parques! Parece ser a ordem que as pessoas se dão no amanhecer. Em terra de sapo, de cócoras com eles. Sigo o conselho da minha avó. 

Sentei-me à distância observando homens e pássaros. Sem o ruído dos motores, esses voavam baixo, alegres e saltitantes, atrevendo-se a pousar aqui e ali, certos de que não seriam incomodados. Ou, arriscavam-se na esperança de bicar a sobra dos humanos. Confesso que fui invandida pelo sentimento sórdido da inveja. Inveja da liberdade dos pássaros e da saudável convivência dos homens. Da aura que, por uma tarde, revestia o espaço compartilhado, a cidade como local do viver juntos que há muito se perdeu no nosso mundo de distâncias e pequenos compartimentos.



a sinalização, por Sergia A. [1]

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Dos farsantes



Às vezes elas fogem de mim. Talvez, apavoradas com minhas tolas intenções. Ou, talvez, o meu esforço não seja suficiente para domá-las. Ou, talvez, me falte paciência para limá-las ao ponto de reluzir. Abro páginas e alguém me diz que nem tudo está perdido. Alguma coisa salva o dia, neste exercício tosco de ser o que não sou. Que Leonard me perdoe a ousadia:


a página, por Sergia A.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Do que a memória guarda: Hannover


Onde estamos quando pensamos?

Hannah Arendt, in A vida do Espírito - O pensar
(trad. Antonio Abranches)



Großer verletzter Kopf, por Rainer Kriester (vista por trás) in Trammplatz,
por Sergia A. (2012)



De vez em quando sou sequestrada por memórias de viagem. Lá do fundo elas emergem nítidas, vagas, por vezes precisando de uma pequena dose de invenção. Um sinal de alerta piscando, indo e vindo, sobrevoando como vagalume quando luzes mais potentes se vão. Estranho mesmo é o luzir e apagar, sem que eu tenha o controle das chaves. Foi assim que Hannover me arrancou da cama para me abandonar diante desta página em branco. Pago o resgate.

Não seguimos a linha vermelha de suas calçadas. Foi uma noite apenas, uma pausa entre Amsterdam e Berlin, rumo ao Báltico. Céu limpo, uma lua enorme contemplando do alto as janelas abertas e o nosso vagar pela noite de verão. Ou, quem sabe, rindo do desespero dos nossos estômagos diante das cozinhas rigorosamente fechadas depois das vinte e duas horas. Retidão e austeridade era tudo o que já prevíamos encontrar. Mas, nunca se sabe o que nos espreita nas sombras da noite. 

sábado, 27 de junho de 2015

O cartão



The world is blue at its edges and in its depths. 

(Rebecca Solmit, in A field guide to getting lost p.29)



palmeiras, por Sergia A.


Sem rodeios, a primeira linha me diz que a alegria de junho dói. Segue sem uma vírgula que me faça respirar. Diz que, às vezes, o caminho refeito pela memória é chama de fogueira a nos consumir. Esfrego os olhos e encontro os óculos, ainda na esperança de que tenha sido traída pelo balançar das letras sonolentas. Os pontos de ardência continuam lá.

Se fechá-los, apertando bem, sou transportada ao instante que o antecedeu. A fresta. A porta. O corredor. Os lençóis revirados e o travesseiro abandonado pela pressa do salto. Atraso o relógio em alguns minutos. Desejo ouvi-lo, estridente, abafar o ruído quase imperceptível do papel se embrenhando pela passagem estreita. Ou, dos passos se afastando sorrateiramente. O toque. 

domingo, 7 de junho de 2015

castelos


Aquietei-me. 
Fechei as janelas. E os olhos, sempre que se findavam as páginas. 
Assim fiquei por alguns dias. Queria deixar passar. Não passa antes que ela se derrame.



entre pedras de um castelo,   por Sergia A.



nomeiam as pedras 
que fortificam os sonhos 
ou o enredo de tragédias.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Geometria do olhar


Ficamos espremidas diante da janela estreita, à espera do elevador. Um ponto branco macula o azul. É, então, que ela preenche meus olhos e ouvidos com coisas sem sentido:


ponto branco sobre fundo azul, por Sergia A.


A cidade moderna recorta o céu para dar à luz minha janela distraída. Faz pouco caso da lua e da sua insistência milenar. Partida ao meio, ela alcança lugar ao sol. Ainda que reclame sua ausência para se fazer notar.

A cidade antiga treme ao pé da montanha. Esfuma os recortes pontiagudos do céu para olhos de caminhantes distraídos. Faz pouco caso do seu altivo caminhar. Sem molduras para pedaço de lua, por inteiro, refaz-se o olhar.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Entre surpresas e suspeitas


The old believe everything; 
middle-aged suspect everything; 
the young know everything.

Oscar Wilde in Phrases and Philosophies for the Use of the Young (1894)           


o vento, por Sergia A.


A juventude me desperta um misto de inveja e admiração. Não apenas pelo viço ou beleza, mas sobretudo pela coragem. Pela fé no que virá, pelo futuro prenhe de realizações. Talvez, por isso suas manifestações sempre prendem a minha atenção. Nas artes, nas ciências ou na política. Não por acaso, três meninos me surpreenderam nos últimos tempos. Não fiz nenhuma pesquisa, seleção ou julgamento. Foram os ventos dos nossos dias que os trouxeram até mim, e acenderam aquela luzinha chata, que fica piscando até que as palavras se juntam na tela tentando fazer algum sentido. 

sábado, 2 de maio de 2015

Das coisas permanecidas

versão para cozinhas:


urgência



a COZINHA de laterais abertas
tinha cheiro de LIMÃO 
FLOR de laranjeira
o verde ESPINHENTO dos galhos 
no ALPENDRE a preguiçosa ESPERA
o CAFÉ a lenha trepidante no FOGÃO:
FOGO que transforma
chama que não se APAGA.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Mediterrâneo


Este é, nas palavras mais simples e directas que pude encontrar,
o quadro do que aconteceu aqui. Não sei que mais poderia dizer. 
Hoje faltam-me as palavras e sobram as emoções. Até quando?

(José Saramago, in A morte à porta de casa/ outros 
cadernos de Saramago, 16/02/2009)



entre terras do mesmo mundo,  por Sergia A.


líquida fronteira 
de terras endurecidas: 
porto derradeiro?

terça-feira, 14 de abril de 2015

Repetindo tardes



O rio que fazia uma volta atrás da nossa casa era a 
imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás 
de casa.
Passou um homem e disse: Essa volta que o 
rio faz  por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
fazia uma volta atrás da casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

(Manoel de Barros, in Uma didática da invenção XIX,
O livro das ignorãnças p.14)




Minha janelea e eu,  por Sergia A.


A nuvem que avançou sobre minha janela, em uma tarde de abril, era a imagem de uma onda gigantesca. Ali, pronta para me envolver em seu túnel d'água assustador. Nada mais me restava, senão o registro do assombro.

O professor examinou a imagem e, do alto de sua sabedoria, afirmou: Nuvem Prateleira, é a classificação.

Já não era mais o mar enfurecido que por um instante visitou minha janela. Era apenas uma prateleira prenunciando o temporal. 
Prateleira? Há que se repetir o desencanto do poeta:  Acho que o nome empobreceu a imagem

sábado, 4 de abril de 2015

Páscoas


As pontes têm que ser refeitas
e também as estações
De tanto arregaça-las, 
as mangas ficarão em farrapos.
(...)

Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém deve se deitar
com um capim entre os dentes 
e namorar as nuvens

(Wislawa Szmborska, in Fim e começo – Poemas p. 92/93
tradução de Regina Przybycien)


embalagem recortada (CartonDruck para Natura - Pomar de cítricos)


A cozinha de laterais abertas tinha cheiro de limão e flor de laranjeira. Árvores espinhentas abusando do verde que se derramava sobre o alpendre. Peitoril largo alongando a preguiçosa espera. O café na caneca de ágata. A goma fresca a tapioca. O fogão à lenha. O fogo que não se apagava. Mulheres empunhando a dança das mãos-de-pilão alucinadas, para meu deleite. 

quinta-feira, 26 de março de 2015

Do que estamos falando quando falamos de corrupção



Esperança não significa uma promessa. 
Esperança significa um caminho, 
uma possibilidade, um perigo. 

Edgar Morin 


o broto, por Sergia A.


Crueldade. Qualidade de cruel, diz o dicionário. Cruel. O mesmo que insensível, que gosta de fazer o mal. Escolho o Insensível. Custa-me crer que alguém, dito são, pratique maldades por gosto. Talvez um gosto demasiado por agradar a si mesmo, ao ponto de tornar-se insensível. O outro deixa de existir. Estou no mundo para ser feliz e quero o que é meu. Pouco importa que meios se farão necessários para que ‘o que é meu’ o venha a ser de fato. Isso, de alguma forma, explica o movimento ganancioso do mundo. A indiferença. Raiz da crueldade humana. É o que me vem à mente quando ouço discursos, e leio slogans de  campanhas anticorrupção. Ou, sempre que penso no grande mal que nos afasta da construção do bem comum.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Das coisas imprevisíveis


queria fechar-se inteiro num poema
lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena

(Herberto Helder in A Morte sem Mestre p.30)



janela para tardes douradas, por Sergia A.


Às vezes o mar me inunda de azul, ela dizia enquanto ajustava a câmera. O foco nas ondas. As ondas batendo forte sobre pequenos barcos. A água perdendo o azul. Corpo e lentes se dissipando na aquarela estendida no horizonte. O tempo  se repartindo em clicks e gotas ao vento. O excesso de luz dissolvendo cores, até que o dia, o horizonte e o corpo mergulhassem, de vez, na luminosidade do branco. Cabia a mim encontrar refúgio para o silêncio que a tormenta exigia. 

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Um motivo


Para ela, 
que não cansa de encantar meus dias



vermelho sobre cinza, por Sergia A.


porque era quarta e era cinza
esqueci que sou pó
e dei de cara com a vida
invandindo o silêncio
traiçoeiro
celebro chuva e sol
porque o dia é dezoito
e o mês fevereiro


(Teresina, 18/02/2015)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Sobre montanhas e flores amarelas


Atrás daquela montanha
tem uma flor amarela;
dentro da flor amarela,
o menino que você era.
Porém, se atrás daquela
montanha não houver
a tal flor amarela,
o importante é acreditar
que atrás de outra montanha
tenha uma flor amarela
com o menino que você era
guardado dentro dela.


(Ivan Junqueira,  Flor Amarela, Poesia Reunida)


atrás da montanha, por Sergia A.



O mundo, apesar de suas montanhas pontiagudas e vales abissais, é redondo. E, talvez por isso, gira. Ou, pode ser o contrário: a forma vem do movimento. Mas o fato é que gira, e girando cria na percepção de seus habitantes os dias e as noites, o inverno e o verão, e todas as metáforas que alimentam sua imaginação. Algo me diz que por esses tempos os giros estão acelerados, removendo tudo que um dia se pensou como certeza. Resta a tontura que nos obriga a respirar fundo para encontrar de volta o prumo.

domingo, 25 de janeiro de 2015

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Um lugar melhor para você e para mim


Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo

(Mia Couto in Poema da despedida)



conhecimento sem cor, por Sergia A.


Era só um menino vendo de perto as insensibilidades do mundo. Há dois anos essa frase me persegue. Para me livrar, dei ao sujeito outro gênero e a usei em outro texto. No entanto, ela (a frase) voltou. Insistente. Encorpada por sua razão primeira. Talvez, porque hoje há um clamor no mundo pela morte brutal de dezessete franceses. Talvez, porque há alguns sussurros sobre a mesma barbárie que abateu mais de dois mil nigerianos. Talvez, porque a distância entre o clamor e o sussurro nos leve de volta ao menino, vítima de outra face da mesma história.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Resíduos do dia de reis


Prostrando-se, adoraram-no;
e, abrindo os cofres, ofereceram-lhe
presentes: ouro, incenso e mirra.

(Mateus 2,1-12)


jardim suspenso, por Sergia A.


Ali, no meio do shopping, ela assiste a correria. Catatônica. Sacolas e sapatos atropelando seus pés estendidos, propositalmente, à frente do banco. Como se alguém pudesse reparar no seu gesto. Cansada, volta para casa. Nada nas mãos. Todo o peso sobre os ombros. Escuto sua voz afogada pela correnteza do tempo. Tudo fica para a última hora. Tudo segue uma lista sem nexo. O impulso alimentado pela pressa. Pior que a pressa, a obrigação de presentear em data fixada. Pior que a obrigação, a necessidade de garantir a troca.