sexta-feira, 13 de maio de 2016

Vivendo um cenário mutante II


Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

(Mia Couto in Confidência) 


o por do sol sobre o planalto central, por Sergia A.


Em junho de 2013 usei esse título para um texto inspirado em versos de Mia e na perplexidade de um momento que dava os primeiros sinais do que nos aguardava em um futuro próximo. De manifestações dissonantes a vaias e xingamentos em estádios chegamos às vias de fato: derruba-se uma presidente, rasga-se um projeto e a democracia cambaleante pede socorro. Se perplexidade era a palavra, hoje é o vazio que nos angustia. E, repito, o tempo segue prenhe de interrogações.

As instituições democráticas estão funcionando, anuncia o quarto poder como se tudo fizesse parte do enredo de mais uma novela. Constatamos, todavia, pela vergonha que se seguiu, que o elo de representatividade há muito se perdeu. Escancarou-se a divisão. Indignação é a palavra que entala a garganta dos perdedores enquanto um líquido amargo trava a língua dos vitoriosos. Sim, perdemos todos! Os que se regozijam se restringem à pequena parcela que teima em frear o curso da história, como se houvesse possibilidade de retorno ao paraíso que entenderam ser seu por direito divino.

Perde a esquerda, que acertadamente abandonou antigos métodos, respeitou a democracia e acreditou em um pacto nacional. Perde por não ter conseguido encurralar a velha política. Um ardiloso caminho. Assistimos a uma reprodução de David e Golias. O gigante tendo por escudo a avidez do mercado financeiro e a ganância treinada de velhas raposas, e por lança a mídia e uma operação anticorrupção seletiva. Mas David, ungido pelo voto, poderia ter armado sua funda com o aprofundamento do seu projeto estruturante. Projeto adormecido nas gavetas dos conchavos que se impuseram como armadilha. Única chance de lançar pedras certeiras, e entrar em sintonia com o clamor daquele junho que denunciava o cansaço pela longa e penosa espera.

Coube-nos o revés do mito: vence Golias. Perde o país a chance de transformar seu imenso potencial em desenvolvimento real, sustentável a partir da inclusão social. No vácuo reverbera o vazio que as palavras não conseguem nomear. Não se trata apenas da incerteza própria do nosso tempo, mas da angústia de ver escorrer por entre os dedos algo que foi palpável por um dia. De ver a progressão natural reverter o seu rumo, em uma luta que não se deu em campo aberto, mas nos porões em que facilmente apodrece a sustentação das frágeis democracias latino-americanas. 

O sol se pôs. Escurece lá fora. Tateando entre náuseas e estarrecimento, meu coração tenta preencher de letras esse vazio. Ou perder-se em fantasias ao imaginá-lo como um rio de forte correnteza, que exige além de muitos braços um novo impulso para se tornar navegável. Acredita que a tecnologia e a transparência que ela permite são instrumentos poderosos desta travessia. Em algum momento se fará um clarão e a idade das trevas voltará ao ontem, de onde nunca deveria ter saído. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada pela visita! Volte sempre.