segunda-feira, 13 de junho de 2016

O deboche dos desesperados e os sobreviventes



O fole roncou no alto da serra
Cabroeira da minha terra
Subiu a ladeira e foi brincar


O Zé Buraco, Pé-de-Foice, Chico Manco
Peba Macho, Bode Branco
Todo mundo foi brincar
Maria Doida, Margarida Florisbela
Muito triste na janela, não dançou
Não quis entrar

[Nelson Valença/Luís Gonzaga in O fole roncou]



Vila Junina 2015
[gentilmente autorizada pela fotógrafa Maria Dimas R. Lages]



Quem nasce nas bandas de cá aprende cedo a amar junho. Fogueiras, guloseimas, brincadeiras, fogos, alegria. Na escola, na igreja, nas praças, nas ruas, tudo é festa. Quem viveu isso na infância não consegue ouvir o fole roncar sem sentir o peito sacudir, a espinha arrepiar e o corpo balançar involuntariamente. Quaisquer que sejam as circunstâncias sempre haverá um xote, um baião, um xaxado, uma quadrilha, um arrasta-pé para animar o forró ou aquietar o coração. Talvez por isso, quando amanhece o mês, eu fique assim olhando para o céu em busca de andorinhas.

Já tremulam bandeiras sob um céu de anil, embora as circunstâncias não nos parecem das mais animadas. Que o diga as marias doidas que carregam suas tristezas muito além das janelas. Em trupes ensanguentadas repetem versos esquecidos que ganham vigor no falar dos nossos dias. Elas e os meninos. Os meninos tinham uma arma, dizem os policiais. O menino recebeu uma bala na cabeça como castigo pelo furto. O parceiro sobrevivente quer estudar, ser jogador de futebol, ser alguém na vida. O menino estava na rua dos outros meninos que estudam e serão alguém na vida. Em uma rua da cidade símbolo de grandeza. No estado que deve explicações sobre o furto. Não, não apenas de um carro de um condomínio em um bairro rico. Mas também o da merenda que muitas vezes garante a frequência de crianças na rede pública onde o menino sobrevivente quer estudar. No mesmo estado que deve explicações sobre uma licitação suspensa por superfaturamento na compra de medalhas, dessas que recebem os esportistas em competições. Essas que o menino sobrevivente quer ostentar no peito e encher os pais de orgulho, nos campeonatos de futebol. Furtos ironicamente não castigados. Nos meus delírios escrevi esse enredo para uma quadrilha com o nome Deboche dos Desesperados. Acordei. É junho. Não é quadrilha e nem delírio. Está no jornal.

Pipocam fogos de artifício em meio às vozes das praças, das ruas, das universidades. O ressoar da resistência de quem não abre mão do pouco que conquistou nesse tempo que dava as primeiras lições sobre o valor da liberdade. Ou mostrava que as coisas não devem e não podem ser como sempre foram. A TV traz até mim um jogral entre grupos de polos opostos. Ao lado da bandeira do Brasil um cartaz amarelo diz 'UNB sem periferia'. Aperto os olhos ainda tontos. Lembro de um sonho de menina: estudar na universidade que era projeção de futuro. Perdeu-se na feitura da vida com o que havia de possível. Outras meninas, outros meninos nas cidades satélites sonham com o lugar que alguém entende ser seu porque nasceu no lago sul. Os demais são invasores. Precisam ser expulsos por não serem merecedores. Sua presença é tão perigosa quanto a daquele menino de dez anos no bairro dos ricos. A perda da exclusividade os leva ao desespero. Somente o desespero justifica o deboche. Deboche que se repete nas instituições ditas democráticas. E o grito que me chega se veste de esperança. Como o segundo menino, por lá também há sobreviventes.

Que acendam as fogueiras, que me alcance o cheiro do melaço quente escorrendo sobre a batata doce. O coração segue o ritmo torto de um corpo em movimentos dispersos. Apesar da tristeza pularemos a janela e entraremos na dança. Talvez não aquela de passos sequenciados ditados pela tradição dos anos. Mas, de algum modo, cavalheiros cumprimentarão as damas. As damas cumprimentarão os cavalheiros, trocando de lados e se arranjado em um grande passeio. Daremos os braços, formaremos uma grande roda, carregaremos no colo os meninos. Se alguém gritar: Anarriê! desobedeceremos em uma alegre rebeldia, respondendo em coro: Anavan!


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