sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Duas narradoras. Dois autores. Um fio


Quando se é cinza nada nos pode doer.

[As areias do imperador/1- Mulheres de cinzas, p.27]


A minha mãe disse que era um vulcão. São as flores
das mulheres. São de sangue. São de lume. Magoam.
Todos me falavam de passar a ser mulher e sobre o
que isso significava de perigo e condenação.


[A desumanização, p.17]



dois livros um café, por Sergia A.



A montanha estava crescendo na mesinha de cabeceira. Decidi avançar acelerando um pouco o ritmo. Por puro acaso um veio logo depois do outro tornando a leitura comparativa inevitável. Dois autores de língua portuguesa e de origens diferentes. Um moçambicano. Outro português (nascido em Angola). Gosto de imaginar que algo muito forte nos une: a língua. Embora nossas formas de expressão sejam distintas. Quando falo nossa, refiro-me à minha em relação à deles bem como a dos dois entre si. No entanto um ponto, neste caso, os une e me desperta: a criação de uma voz feminina que narra a solidão de estar em um mundo hostil em tempos, espaços e culturas muito diversas.

Seria simplificador dizer que em As areias do imperador/1-Mulheres de cinzas Mia Couto remonta a história da guerra ao sul de Moçambique no fim do século XIX, a partir de dois pontos de vistas. Mas, para resumi-lo sem tirar do leitor o prazer da descoberta, não devemos ultrapassar o limite da orelha: uma ficção inspirada em fatos e personagens reais, em que duas vozes se alternam para narrar o ocorrido no lugarejo Nkokolani. De um lado o sargento português, enviado para organizar a batalha contra Ngungunyane (o último imperador africano no comando do chamado Estado de Gaza). Do outro, a sua intérprete. A viva, uma garota pertencente à tribo local mas educada por missionários europeus. Voltando às impressões, a narrativa parece superar o plano do autor exposto na estrutura que dá voz a uma personagem encerrada em um espaço-tempo histórico e, por natureza, opressor. Pois essa voz transcende o seu lugar e referências culturais, para atingir em cheio o leitor atento do século XXI. 

Do mesmo modo, não podemos reduzir A desumanização, de Valter Hugo Mãe, ao olhar de Halla sobre a sua história. A história de uma menina traumatizada pela morte da irmã gêmea, vivendo sob a geografia inóspita da Islândia. Aqui não há um tempo definido. Ele se submete ao espaço como se a existência cíclica do tempo se fechasse em si mesma, sem passado ou futuro. No entanto, o impacto da prosa poeticamente arranjada em 151 páginas leva o leitor a extrapolar o não tempo de um espaço demarcado, e trazê-la para bem perto de si. Em nota explicativa, o autor fala da sua relação com a forte presença da ausência do irmão (que nem conheceu). Da relação com a espiritualidade Islandesa através da música de Hilmar Örn Hilmarsson, cuja beleza o salvava da tristeza. O que pode soar como uma autorização (como se nós leitores precisássemos dela) para divagar pela sensibilidade da escolha de uma voz feminina. Uma voz capaz de nos fazer ver e sentir, seja qual for a medida da distância que nos separa.

Tendo a acreditar que o universo conspira a meu favor. Parece-me não ser à toa que os dois livros tenham se encaixado nas minhas mãos justamente em um momento em que as ruas do meu país se abrem para as mulheres e a exposição de suas dores. Quando em meio aos jogos olímpicos, predominantemente vistos sob a ótica masculina, as meninas nos surpreendem. Exibem força, graça em todas as cores, e a coragem de falar do seu próprio corpo e das dificuldades em lidar com entraves biológicos como a menstruação. Quando parece necessário comemorar pequenas vitórias, sendo a maior delas o direito de falar.

Há nas duas narradoras, ainda que criadas por mãos masculinas, um fio que facilmente conectamos às protagonistas dos nossos dias. No desejo de ser cinza ou de ser longe, as duas fogem corajosamente do destino que lhes foi desenhado e escrevem um caminho. Abraçam com lucidez e perplexidade o doloroso aprendizado de serem sobreviventes entre irmãs mortas. Ou como diria Imani, a narradora de Mia: Agora entendo: aprendi a escrever para melhor relatar o que vivi. E nesse relato vou contando a história dos que não tem escrita. Faço como meu pai: na poeira e na cinza escrevo o nome dos que morreram. Para que voltem a nascer das pegadas que deixamos. [p.342].



Hilmar Örn Hilmarsson
The Upcoming Temple of the Icelandic Ásatrú Association


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