domingo, 18 de setembro de 2016

Lenda, ficção e realidade em Velho Chico



Mas o que é a história da América toda senão uma crônica do real maravilhoso?

[Alejo Carpentier, in O Reino deste mundo, prólogo p.12]




a travessia, por Sergia A. (1994)


Por muitos anos férias foram portas para estrada e aventuras. Pequenas ou grandes. As crianças muito cedo ganharam a autonomia de fazerem suas próprias malas. Com valiosa contribuição da escola que era chegada a aulas passeio, e foi responsável pela elaboração de um rol mínimo infalível. Colado no guarda-roupa, ao primeiro sinal era só consultar e adequar quantidade de dias, clima, propósitos. Uma vez achamos por bem rodar pelas estradas do nordeste. O compromisso no sertão era visitar Pe. Cícero em Juazeiro-CE e o mosteiro de São Bento em Garanhuns-PE, depois descer a serra, atravessar o Rio São Francisco, uns dias em Aracajú-SE para de lá perseguir o cheiro do mar, margeando toda a costa até o Ceará nos conduzir de volta ao sertão.

Poderia enveredar pelos muitos atalhos que esta aventura descreveu, mas no meio dela teve uma travessia. É a ela que a minha memória caprichosa teima em recorrer para fazer conexões. Lembro do nosso encantamento ao avistarmos a grandiosidade do Rio. A cor das águas, a imensidão que os compêndios de geografia não conseguiam traduzir. Lembro dos pequenos olhares assustados buscando confiança no meu ao descobrir que embarcaríamos, com carro e tudo, em uma balsa. Ao som do ronco contínuo do motor e embalados por um leve balançar enfrentamos, lentamente, os nossos receios até atracar na outra margem bem adiante. Tempo de escutar histórias, causos, ver carrancas e despertar para suas lendas e mitos. Pela primeira vez ouvia falar do Gaiola encantado, o barco fantasma que transporta as almas para o além. Ali era torcer para não ouvir o apito.

realismo mágico, por Sergia A
Muitos anos depois, quando retorno à Literatura, sou levada a estudar o realismo mágico (ou real maravilhoso) para analisar a obra O Reino deste mundo do escritor cubano Alejo Carpentier. Alejo inaugura o gênero que se fortaleceu com Gabriel Garcia Márquez e muitos outros escritores Latino-americanos. Do estudo resultou um artigo que discutia a narrativa como um universo montado de um lado pelo olhar da História [o relato das experiências vividas pelos habitantes do terço ocidental da ilha de São Domingos, colônia francesa nas Antilhas, no fim do século XVIII e início do século XIX, que levariam à constituição da República do Haiti]. E de outro, o olhar mágico da imaginação que vê na riqueza do real o prolongamento do mito, dos deuses, das lendas indígenas e africanas presentes na formação cultural de seu povo e que foram determinantes para a arquitetura das históricas lutas por independência.

As duas memórias se misturam para dar conta do entrelaçamento de realidade, ficção e lenda no fato ocorrido durante a gravação da novela Velho Chico, dirigida por Luiz Fernando Carvalho [o mesmo do longa Lavoura Arcaica, e minisséries como Hoje é dia de Maria, Capitu e Os Maias]. Lendas são realidades ampliadas, alteradas por uma revelação que insere o sobrenatural, como se houvesse uma necessidade poética de negar a crueza dessas realidades. No caso do Rio São Francisco, quase sempre são um alerta para os riscos de suas correntezas que tragam muitas vidas, traiçoeiramente. Quanto mais próximo às barragens das usinas hidrelétricas pior a coisa fica, em virtude do controle mecânico das comportas que altera o fluxo natural das águas. Quem com ele convive assim aprende a temer e respeitar.

A ficção de Benedito Ruy Barbosa se apropria da vida real de suas margens e de suas lendas para em alguns capítulos flertar com o realismo mágico. As cenas em que a personagem Santo, ferido, é levado pelas águas e curado em ritual de pajelança, ou a outra em que Martim percebe que foi levado pelo Gaiola encantado, são bons exemplos. Não contavam, porém, que a realidade se revelasse mais próxima da lenda do que a ficção. Cumprindo seu papel nos mistérios da existência o Rio, impassível, cobrou o seu tributo. Coube ao grande ator, protagonista da ficção, o recompensar com um mergulho final. Certamente, neste instante, a trágica realidade ribeirinha se amplia alimentando novas lendas. Ou como diria Carpentier, (...)pelas fecundas mestiçagens que propiciou, a América está muito longe de ter esgotado seu caudal de mitologias.


Fonte: Youtube


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