sábado, 3 de dezembro de 2016

A festa do silêncio



Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se de ondas silenciosas. 


[António Ramos Rosa, em Volante Verde, 1986] 
 



gotas tímidas, por Sergia A.



Li por acaso uma crônica que publiquei há dois anos [Advento IV]. É desolador constatar, que de lá para cá, em nada avançamos. Ao contrário, fomos arremessados por ventos furiosos para uma ponte que nos leva ao pior do passado. É a ela que retorno quando toda a lama, o lobby e a lambaça, jogados no ventilador por esses dias, nos entristecem mas apagam as aparências e clareiam o caminho.

Depois de dois anos de batalhas entre 'coxinhas' e 'mortadelas', somos alçados ao posto de espectadores manipulados da guerra entre políticos corruptos e paladinos da justiça e da moral. Misturam-se em um jogo sujo, estufam o peito ensimesmados, enquanto a economia do país se esfacela. As forças ligadas aos grupos financeiros tiram proveito do caos e armam seu bote para manter lucros e privilégios, enquanto a vida das pessoas escoa pelo ralo. Em minhas andanças pelo olhar do outro, vejo a volta das festas sem alegria. Vejo a incerteza sobre a escola do filho no ano que vem. Se o salário será suficiente para o plano de saúde. Ou, se sequer haverá salários. Vejo o medo diante da violência que campeia pelas ruas. A dos marginais e a da mão poderosa do Estado militarizado. De certeza apenas a angustia existencial que nos persegue: algo de muito ruim pode, de repente, acontecer.

E no meio da tragédia, o silêncio. Interrompido aqui e ali por vozes enrouquecidas. O silêncio que abre caminho para o pensar e para sentir o estalar de nossas frágeis relações. De como não nos vemos parte de um todo. De como não compreendemos que nada estará completamente bom em mim se o outro, que faz parte de mim, bem não estiver. De como as coisas grandes dependem do modo que construímos, na intimidade, as pequenas. Na intimidade em que heróis ou salvadores se desnudam para nos ensinar que precisamos apenas de nós. Do nós formado pela junção dos eus que conseguem se perceber no outro. 

Há uma fonte de água clara para quem quiser saciar sua sede. Ou visualizar o chão de onde ela brota. É dela que precisamos cuidar. O resto se resolve com infraestrutura, tecnologia e transparência que desse cuidado virá. Repito o desejo enquanto gotas tímidas tentam dissolver as nuvens. Não consigo desistir do que resta de humano em cada rosto. Que a chuva desta época seja intensa! Amanhã, quando o céu estiver limpo e as ruas enxutas, quem sabe as preencheremos com um alegre e multicolorido cantar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada pela visita! Volte sempre.