sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Sobre mosaicos e percepções



E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade


[Vinícius de Moraes/Carlos Lyra in Marcha de quarta-feira de cinzas]




o estudo, por Sergia A.


O tempo não está para euforias, é certo, mas os dias são de festa e a tristeza me cansa. Ao invés de ficar nos cantos resmungando ando tomando gosto pela arte dos mosaicos. O vaso quebrou? paciência! Vamos juntar e ver o que dá para fazer com os cacos. Partindo deste princípio, o artista plástico Vik Muniz foi além no jogo da percepção visual, com o seu “Lixo Extraordinário” (2010). O documentário mostra o trabalho desenvolvido com catadores de lixo de Duque de Caxias-RJ, e ganhou prêmios no festival de cinema de Berlim (categoria Anistia Internacional) e no Festival de Sundance. Foi no lixão, e com a ajuda de quem dali tira o seu sustento, que ele encontrou matéria prima para produzir algo inusitado, de valor estético e social, revelando todo o poder da criatividade na arte de dar vida nova ao que sobrou.

Desafiada e com o intuito de não me perder em amargura, ainda que com direito a uma taça de espumante, recolho da lama os cacos para compor minha listinha de percepções. Sempre funciona:


1) Sim, o vaso precioso do acordo de conciliação nacional espatifou-se. A primeira presidenta da república sofreu impeachment, mas 2016 o reafirmou como golpe ao fazer emergir, da sujeira exposta, suas razões... Se por um lado a Lava Jato, pelo espetáculo que produziu, foi usada para condenar uma visão de mundo, ferindo garantias individuais e desrespeitando leis, por outro o feitiço, às vezes, vira contra o feiticeiro. O jogo da verdade de um dos seus delatores comprovou o que todos já sabiam: a perniciosa relação entre grandes empresas e governos (de todos os partidos) com a anuência do judiciário que garante impunidade aos seus. Podemos agora dispensar salvadores e cobrar de todos que ajam como cidadãos. Temos agora a oportunidade de juntar pensamentos em torno de uma sociedade mais transparente, com TODOS submetidos às mesmas regras e leis.

2) Sim, o capital financeiro e a indústria retrógrada, habituada às benesses do Estado, se aproveitaram do caos político/econômico e institucional para tomar o poder e enfiar goela abaixo o discurso neoliberal da austeridade, propondo retirar dos trabalhadores e das camadas sociais de baixa renda as parcas conquistas da última década. No entanto, nada pode mudar o que ficou. Sabe aquele gostinho do "eu também posso"? Foi disseminado e não será esquecido.

3) Sim, golpistas ignoraram propostas de especialistas em educação pública e aprovaram uma MP que descaracteriza o ensino médio, implantando o utilitarismo e a segregação educacional entre ricos e pobres. Substituíram uma tentativa de aproximação de Paulo Freire pela pedagogia das fundações ligadas a grupos financeiros. Porém, anas julias ocuparam escolas públicas, discutiram a educação como adultos e conseguiram barrar o corte das disciplinas que fazem pensar.

4) Sim, a PEC do fim do mundo foi aprovada no Congresso para desmontar o estado de bem estar social proposto pela Constituição. Mas, foram as circunstâncias de sua aprovação que confirmaram a destruição da democracia brasileira. A força militar do Estado, sob comando dos golpistas, mostrou toda a sua brutalidade. Professores, estudantes, e representantes de movimentos sociais foram abatidos em praça pública a olhos vistos e a violência repercutiu pelo mundo. Podemos agora desmascarar um a um os seus defensores e suas motivações, discutir com mais clareza e unir esforços para reconquista da democracia.

5) Sim, está em curso uma reforma da Previdência Social que nega o princípio de sua existência, com o claro objetivo de por um fim a um direito universal e impulsionar a venda de previdências privadas enriquecendo bancos e afins. Entretanto, os auditores da receita federal e outros tantos independentes demonstraram por "a+b" que o tal "rombo" não passa de jogo de poder. Ainda há tempo de banir os seus propositores e repensar o sentido do trabalho e da vida das pessoas.

6) Sim, choramos a despedida de D. Paulo Arns e de outros símbolos da resistência pelo mundo. No entanto, as partidas nos fizeram rever os seus legados. Sim, isto pode ser o sinal do fim de uma era. Mas, pode também ser o sinal de que alcançamos o ponto crítico e venha aí a mutação. Talvez a esquerda possa enfim olhar para si mesma com olhos de novos tempos, repensar seus erros, reciclar métodos e fazer renascer o entusiasmo pela construção de um mundo que não seja meu e nem seu, mas seja bom o suficiente para abrigar o todo que sobreviver.

Lista pronta. Entre uma explosão de estrelas coloridas e o pipocar de simples rojões vou fazer contagem regressiva e pedir ardorosamente que 2017 inicie, então, um tempo de montar mosaicos. Não apenas aqueles tradicionalmente utilizados para abrigar figuras de grandes dimensões e muitas cores, ou para serem vistos de longe. Mas também os usados para decorar pequenas peças que penduramos no jardim e na varanda. Ou, mesmo no banheiro para encantar momentos de completa solidão. Quando, despidos, nos tornamos capazes de fitar um ponto e refletir sobre a harmonia criada justamente pela irregularidade dos pedaços que se encaixam para dar forma e revelar a beleza do todo transformado.


Fonte; YouTube


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