segunda-feira, 5 de junho de 2017

Do caminho



The journey, not the destination, becomes a source of wonder.

(Loreena McKennitt in The book of Secrets)




Primavera, por Sergia A.



Viajar é parte de mim. Talvez, um traço herdado do meu pai que em sua vida curta foi de mascate a dono de caminhão para transporte de cargas. Boa parte do nosso tempo foi consumido acumulando estradas e jornadas. Ele buscando sustento, eu o desperdício em dias de folga do trabalho formal, e ambos ganhando a vida. Digo trabalho formal para diferenciá-lo da arte de escrever a que hoje me dedico. Como se a escrita não fosse trabalhosa. Mas, é que o lado prazer/necessidade se desvia da minha compreensão da palavra trabalho. E o viajar, como parte da mesma arte, ganha nova roupagem. O certo é que, de um modo ou de outro, como no tempo do meu pai as viagens me alimentam, me fortalecem e me afastam do desencanto oferecendo-me novas possibilidades.

Contudo, de uns tempos para cá, já não faço grandes planos. Tenho uma queda pelas coisas que me acontecem por acaso. Foi assim que entrei em uma agência de viagens para montar um roteiro, e recebi uma oferta: a última vaga para um grupo relativamente pequeno que se destinava a cidades medievais ao Sul da Alemanha. Isso ao mesmo tempo em que acontecia a exposição Das brasilianische Weltkulturerbe Serra da Capivara – älteste Siedlungsspuren in Amerika? (exposição fotográfica e exibição de documentário sobre os achados arqueológicos e a região da Serra da Capivara-PI, promovidas pela Embaixada Brasileira e o Instituto de Arqueologia Alemão). Ah, o acaso! Ajustamos. Fechamos.




o voo do pólen, por Sergia A.
A estrada, a energia e a canola por Sergia A. 















Aprendi com o tempo que o alimento nos chega por vários sentidos: o primeiro deles a visão. Em seguida o olfato, logo depois a audição. Penso nisso enquanto estou a deslizar nas invejáveis estradas contornando floridos campos de canola margeados por placas de energia solar. Ou, acompanhando o voo do pólen que embranquece o verde provocando espirros. Guia-me um simpático alemão que viveu dez anos no nordeste brasileiro. Não perdeu a rigidez e a autenticidade típica de sua gente, mas acredita ser um espírito latino reencarnado em terras germânicas, o que garante a eficiência do serviço e adocica a convivência. Perfeito. Inevitavelmente o sotaque me conduz a outras viagens bem particulares. A infância vivida entre missionários alemães, depois que meu pai e seu caminhão se foram. A porta da nossa casa sempre aberta para seus visitantes. A Igreja. A escola. As dádivas. As marcas na alma que não cicatrizam mas adormecem com o vinho. É a vez do paladar. Um Silvaner vendido no balcão para ser degustado às margens do Main (ou Meno), avistando a fortaleza de Marienberg, no entardecer frio e chuvoso de Würzburg. 


Tudo apenas começava. Habituada a viagens solitárias, sou bicho do mato. Observo, escuto antes de qualquer manifestação. Passam-se dias. Dou um salto no tempo e no espaço (sem prejuízo de outras histórias por contar) para fechar este texto com o motivo da sua escrita: as surpresas do caminho. A convivência com o grupo começa então a se delinear. Estamos a alguns dias do fim da jornada. Alguém chama o meu nome e pede confirmação da minha origem. Olhamo-nos nos olhos pela primeira vez em tantos dias e nos reconhecemos. Fomos amigas na infância povoada pelo sotaque que agora nos guia. O mesmo banco de escola por anos a fio. O mesmo gosto pela poesia. Os mesmos sonhos para nossa aldeia. Nos separamos no fim do ensino fundamental. A vida nos impôs caminhos diversos. Não retornamos. Perdemos contato. Choramos pelo inusitado reencontro em uma estrada alemã embalada pelo som, que de algum modo nos remetia àquele tempo. A viagem ganha novo significado. Ou, como diria a voz que ora me inspira, mais que o destino é a jornada que se revela fonte de inexplicável espanto. E já não somos quem fomos antes da partida.

A chuva o rio a fortaleza, por Sergia A.


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