domingo, 11 de junho de 2017

O futuro dentro de um livro [ou, um melro na janela]


Um lindo melro abre-me os olhos
de manhã. Canta no verde dos ciprestes
a canção do amor de outrora

Um lindo melro apaga-me os sonhos
pela manhã. Eu sentada no meio
da luz estou mesmo acordada.

(Ulla Hahn in Despertar, tradução de João Barrento)




Janela para os Alpes, por Sergia A.


Em uma viagem ao sul da Alemanha, não há como não ter contato com vida e obra de Ludwig II (1845-1886), o rei louco da Baviera. Claro que sua presença foi sentida em praticamente toda a jornada, mas a ele dediquei um dia de caminhada, escadarias, e algumas horas de leitura rápida. O dia foi intenso e de grande aprendizado sobre a natureza humana e sobre o valor da arte e dos livros, quando esses tocam profundamente a sensibilidade das pessoas. 

O cisne de pedra, por Sergia A.
As visitas guiadas foram a apenas dois castelos. O mínimo, mas o máximo que o tempo podia proporcionar. Ainda assim suficientes para encantar-me não só com a imponência arquitetônica do Schloss Neuschwanstein erguido sobre os Alpes ou a riqueza de detalhes do Schloss Linderhof, como também com a onipresença das lendas medievais que deram origem às óperas de Wagner (de quem Ludwig II foi patrono) e alimentaram largamente a literatura alemã. Desde o nome do primeiro: Novo Cisne de Pedra, em tradução literal - referência à ópera que reconta a lenda do Cavaleiro do Cisne, até a existência de uma gruta no segundo (Gruta de Vênus) - uma caverna cravada nas rochas onde aconteciam performances de óperas e peças teatrais. 

o portão, por Sergia A.
A visita à gruta não estava no programa, mas isso já não importava pois o que me impressionou mesmo foi a Sala de Audiências, seu cômodo preferido nos anos que passou em Linderhof. Nunca usada para o fim proposto, uma vez que o Rei não era afeito aos assuntos políticos e administrativos, preferindo transformá-la em uma silenciosa sala de leitura. Fechado em si mesmo, era ali que os livros e os libretos despertavam sua imaginação, preenchiam os seus dias de leitor compulsivo e alimentavam seus ambiciosos projetos pessoais. Excentricidade que determinaria o seu futuro.

No retorno a Kempten, ao pé dos Alpes que fazem fronteira com a Áustria, era hora de restabelecer a energia do corpo e da mente. Exaustos, meu companheiro e eu, sentamos em um restaurante italiano (uma escolha sempre certa e sem risco nessas horas). Brindamos. E, à medida que saciávamos a fome com uma boa entrada de spaghetti (como fazem os italianos) começamos a rir de coisas bobas, avaliando as reminiscências do dia com muita leveza. Estávamos felizes e agradecidos por realizar um sonho nascido dos livros e cartões postais que povoaram a minha infância/adolescência. Sentindo-nos plenamente merecedores de uma boa mesa e um bom vinho. 

Eis que um senhor que estava na mesa ao lado se aproximou, dirigindo-se a mim em alemão. Pedi desculpas e expliquei-lhe nossa condição de turistas, de passantes e desconhecedores da língua. Ele então retrucou, em inglês, que se aproximara para entender as razões de tanta alegria. Despejou sobre nós as suas dores. Assustada, novamente pedi desculpas e tentei animá-lo. Percebi um cateter sob uma bandagem no seu braço o que me fez concluir que ele deveria estar em tratamento de alguma doença grave. Sem que eu perguntasse ele mesmo confirmou tais suspeitas, pediu desculpas, e disse que continuássemos felizes porque, em quaisquer circunstâncias valia a pena viver. Brindamos à vida. Desejei-lhe saúde. Voltei para o hotel acompanhada de questionamentos sobre o tão propagado direito individual à felicidade. O direito ao riso em um mundo em que sobram tristezas. Sobre a ferida aberta e o desencanto com o meu país, e as razões que me levaram a buscar outros ares ainda que por apenas duas semanas. 

Nada como uma boa noite de sono. Correria ao despertar. Malas fechadas, novo destino. Novas descobertas, nova acomodação. Antes de dormir na noite seguinte uma inevitável consulta aos portais brasileiros para saber a quantas anda a nossa tragédia particular. Os jornais estampam o drama das comunidades ribeirinhas na Zona da Mata Sul de Pernambuco, em dia de enchente. A foto de uma menina de oito anos, ajoelhada sobre uma jangada enquanto abraça fortemente uma mochila, viraliza nas redes sociais em instantes. O motivo: sua escolha por salvar da fúria das águas os seus livros e material escolar. Vira alvo da mídia e das campanhas de doação. Bem articulada diz espontaneamente: "o meu futuro está dentro desses livros". Repenso a minha própria trajetória. O futuro que hoje habito conquistado pelos livros. Repenso a hipocrisia de um país cujo poder político e econômico fecha as portas para qualquer possibilidade de mudanças estruturais, que permita às pessoas a ascensão social pela educação, mas que se comove e faz uso daquela imagem para não perder a oportunidade de posar de caridoso e preocupado com o futuro.

Rivânia, por Valter Rodrigues


É uma nova manhã. Leio um poema de Ulla Hahn e lembro de um melro cantando na minha janela com vista para os Alpes. Abriu-me os olhos. Sim, são os livros que podem modificar comportamentos e determinar escolhas. No entanto, parece razoável esquecer por um instante projetos de felicidade individual (a minha, a de Rivânia salva ou dos que se sentem bem pela doação que fizeram) e pensar a nossa responsabilidade coletiva. Não é difícil se certificar de que a educação só patrocinará oportunidades dentro de um sistema de desenvolvimento econômico inclusivo. Basta observar o que países desenvolvidos fizeram há muito tempo. Sem oportunidades, ainda que existam livros não haverá escolhas para as rivânias que a enchente leva todos os dias. Para essas jamais existirá um misterioso cavaleiro que chega em um barco conduzido por um cisne para salvar a donzela. Seja na lenda, na literatura, na ópera ou sequer na imaginação.


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