quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Na mesma estrofe



nascemos em poemas diversos
destino quis que a gente se achasse
na mesma estrofe e na mesma classe
no mesmo verso e na mesma frase

(Paulo Leminski, in CAPRICHOS & RELAXOS p.86 - 1985)




o rio na janela, por Sergia A.


No longo trajeto entre o Ahu e o aeroporto, o taxista puxa assunto para quebrar o silêncio da manhã gelada:
- Retornando para casa?
- Sim.
- Para Paris? 
Surpreendo-me com a ousadia da pergunta, já que não tenho traços e nem sotaque franceses. Olho para minha roupa e contenho-me para não dar uma risada.

- Não. Para Teresina, no Piauí  - Respondo no tom explicativo que me habituei a falar, para evitar o constrangimento em uma questão geográfica simples: as capitais do nordeste que muita gente boa do sul e do sudeste faz questão de dizer que desconhece.

- E o que tem de bom por lá?
- Teresina é uma cidade linda, o único defeito é aquele calor de rachar. - Dou a resposta clássica, treinada, para evitar o comentário sarcástico que normalmente vem em seguida. 

- Mas se tiver rio pra pescar tá tudo certo...
- Temos dois.
- E o que se come assim como típico de lá, daí?
- Carne de sol, carneiro, capote (galinha d'Angola) e cabrito no cardápio dos restaurantes chiques ou bode para os íntimos.
- E se come galinha d'Angola? aqui criamos só para fazer barulho na porteira. 
- Para isso criamos e não comemos os marrecos.
- Tá vendo esta ponte do lado? Era pra Copa, ficou aí sem terminar?
- Também com o governo que vocês têm... - Arrisco, deixando um gancho para a prosa encontrar o rumo da política.
- E por aqui dizem que a culpa é de vocês do nordeste que elegeram Dilma.
- Pois é, percebe-se que nesta república da moral tudo é lindo e funciona perfeitamente. 
Digo recheando as palavras de ironia, armando-me para enfrentar um "coxinha". Penso nas mulheres com filhos no colo que me pararam no centro da cidade para pedir para "completar o seu almoço", e nos mendigos expostos ao vento nas calçadas. Ele ri, compreendendo cada virgula e cada suspiro:

- Então... por aqui na época do impeachment se perguntava, cadê o povo que votou em Dilma que não aparece mais? E eu respondia: ué, olha aqui um... não estão enxergando? Ente Dilma e Aécio, você acha que eu seria idiota pra votar naquele rapaz?

Dou uma risada de alívio, desarmada enfim. Há muito perdi a paciência de explicar a escolha de Dilma dentro do contexto de desigualdade que marca este país. E ele continua:

- Vou lhe contar, moça. Trabalhei por muitos anos em uma empresa grande. Construção e exportação (disse o nome, mas fiz questão de não gravar). Toda semana eu levava um envelope lacrado para o escritório de um certo senhor. Não sabia o seu conteúdo, apenas cumpria a minha obrigação. Me diziam pra ter cuidado e entregar em mãos ao destinatário. Quando estourou o escândalo do BANESTADO (fim dos anos 1990), que envolvia FHC e toda a corja do PSDB, eu vi o cara pra quem eu fazia as entregas, na TV e nos jornais. Sabe quem era? ele mesmo, o famoso doleiro Alberto Youssef... 

- O mesmo que fez acordo de delação homologado pelo juiz , e ficou livre, leve e solto para continuar cometendo seus crimes? - Digo já em tom de empatia só para ouvi-lo confirmar:

- Sim, o mesmo que agora faz novo acordo com o mesmo juiz... (dá uma risada)
- E tem gente que grita que a "roubalheira" começou com o PT...
- Que nada, moça, isso sempre existiu... agora quando eles estão por cima não são presos nem com prova... 
- Então, os nordestinos...  estávamos certos?

Já não há tempo para respostas. Chegamos ao terminal. Sete horas, entre voo e conexão, me separam da minha cidade cheia de sol. O tempo é bom. Aliás, nada é melhor que o tempo para alinhar poemas. Faça frio ou calor.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada pela visita! Volte sempre.