quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Entre o ódio e o medo: a esperança



Nos abrimos para que homens e mulheres escutem
E nos dizemos: Olha, não tenhas medo, sê cândido e anuncia corpo e alma,
Demora-te um pouco e depois segue, sê generoso, prudente, puro, magnético,
E o que tu exalas poderá voltar, como voltam as estações
E poderá ser pleno, como as estações.


[Walt Whitman in Por esses Estados, tradução de Ramsés Ramos]
[Folhas da Relva p.23]



templo à luz, por Sergia A.



Por esses tempos sombrios, frequentemente me envolvo em "tretas". Não aprendi a calar diante do que fere meus olhos ou ouvidos. E depois trago a convicção de que se a internet e as redes sociais deram voz aos imbecis, como disse Umberto Eco, é preciso que vozes sensatas apareçam para equilibrar os ruídos e alimentar a esperança.

Foi assim que ao defender o estado democrático e criticar uma intervenção policial autoritária em uma universidade, ouvi um questionamento sobre "o ódio do pessoal da esquerda a uma farda"  e os "calafrios" diante de armas. Não podendo responder pelos outros mas apenas por mim, respondi que não sou movida pelo ódio. E, não pude evitar que daí surgissem duas ideias, quase que de imediato. A primeira: se até aquele momento eu não tinha me assumido como "alguém de esquerda", e a defesa da democracia contra o arbítrio assim me identificava, pontos para a Esquerda. A segunda: esta seria uma boa oportunidade para deixar de lado a insinuação de covardia contida no questionamento, e examinar o meu medo de armas. Este sim, um sentimento verdadeiro. Neste ponto ele estava certo. Tenho razões e argumentos fortes contra o uso indiscriminado de armas, principalmente quando são usadas com o claro intuito de intimidação como fora o caso que deu início à discussão.

A reflexão sobre o meu medo de armas me levou à infância. Lá pelo fim da década de 1960, com a ditadura militar brasileira caminhando a passos largos para seu período mais cruel. Tínhamos como vizinhos um casal com filhos pequenos. O pai tinha problemas com álcool, e ficava violento quando bebia. Desencanto com a miséria? Não sei, era muito menina para entender. Um dia estava na porta de sua casa, bêbado, fazendo ameaças com um facão. Chega a polícia (um soldado armado) e o abate na frente da mulher e dos filhos. Escondi-me em um canto do quarto mas não deixei de ver a aflição da minha mãe trazendo as crianças, agora órfãs, para dentro da nossa casa para poupá-las daquela visão. Depois do enterro, a família se mudou e o assunto foi dado por encerrado. Ficou o medo de ir à feira e ver soldados armados na esquina.

Outro episódio também me veio à lembrança. Minha pequena cidade se situava em relevo acidentado, rodeada por serras, encostas íngremes e pequenos morros. Um lugar ideal para treinamento de tropas que se preparavam para o combate à guerrilha. E lá estavam eles, soldados com cara de meninos, vestidos de verde, distribuindo chocolates para crianças e aparentando gentileza. À noite ouvíamos o estampido de armas ao longe. Uma noite percebemos o alvoroço rumo ao Posto de Saúde. Um deles tinha perdido parte da mão. Tudo isso se ouvia aos sussurros. Não era assunto para crianças. 

Depois fui levada ao meu tempo de universidade. Fim da década de 1970/início dos anos 1980. Exilados retornando ao país e nos convidando a participar ativamente dos movimentos pelo retorno da democracia. Foi então, que descobri o que era ter um Campus tomado por policiais armados em dia de greve de estudantes, o que era uma tropa de choque, o que era tortura, o que eram os porões da ditadura e quem eram as Clarices e Marias da música de João Bosco e Aldir Blanc que me encantava na voz de Elis. 

Como se esse histórico fosse pouco, tenho acompanhado a onda de violência pelo mundo. O terrorismo de grupos fundamentalistas e o terrorismo de Estado que fomenta guerras para lucrar com a venda de armas aos dois lados. A onda neofascista. Acompanho a violência gratuita nas cidades americanas, e que por vezes se repetem por aqui ou em outros países. Entre as múltiplas questões envolvidas como disputas geopolíticas, a intolerância, o discurso religioso estreito, a homofobia, etc, escolho a indústria armamentista que se fortalece com o embrutecimento humano presente em todas elas. Sempre que vejo noticias como as que me chegaram da pequena cidade de Sutherland Springs, no sudeste do Texas, me faço aquelas perguntas típicas da gestão estratégica de empresas: Qual seriam a "missão", "os valores" e a "visão de futuro" dos fabricantes de armas?

Alguém pode argumentar que a "missão" estaria ligada à defesa. Apoiando-me nas  estatísticas de segurança pública dos países que alcançaram um grau de civilização tal que dispensam o uso de armas letais por policiais em ações corriqueiras, repito como mantra: nada me convence de que algo que tem como objetivo a morte seja eficiente na defesa da vida. Sim eu escolho a esperança de que, como diz o poeta, aquilo que tento exalar possa voltar e ser pleno, como as estações.

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