quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Sobre a face sombria



Dois lados, por  Sergia A.



(...) eu não tenho estética, não busco os temas, os temas me
buscam,  eu tento detê-los mas ao final eles me encontram,
então há que escrever para ficar-se tranqüilo (...)


(Jorge Luis Borges, em conferência sobre criação poética.
Trad. de Wanderson Lima)




Há algum tempo venho resistindo ao impulso de falar sobre esse assunto. Talvez um tempo necessário para o distanciamento que possibilita uma visão do todo, e ameniza os sentimentos que levaram à compreensão de suas diversas faces. Mas, como dizem os grandes mestres, não temos domínio sobre os temas que nos atraem. Ao contrário, somos escolhidos por eles. Então, sem mais fuga, há que se deixar as palavras seguirem seu curso.
 
Sabe-se que o trabalho é um forte componente da vida ativa do homem. E, pode-se dizer que são as atividades produtivas e seu funcionamento que predominam na concepção geral de homem do nosso tempo. O ambiente de trabalho, como um importante recorte do mundo, torna-se assim um bom lugar para observar o comportamento humano. Tive a sorte (sorte?) de trabalhar por trinta anos na mesma empresa, o tempo que chamei de Laboratório. Os altivos consultores de carreira devem estar arrepiados, mas isso não me constrange ou diminui o valor da minha experiência, pois dediquei meu tempo e minhas ações a uma empresa enorme, com uma missão social importante, com várias formas de atuação no mercado, e nos últimos anos com uma grande rotatividade de pessoas. E é justamente na riqueza proporcionada pela convivência com pessoas que se apega o meu delírio nesta noite de clima ameno (benditos sejam os dias de chuva!).

Um dia desses em um encontro (ainda sou chamada para encontros, que benção!), tive a oportunidade de dizer a um grupo o quanto dava graças à vida por ter me permitido fazer parte dele. Mas nem tudo são flores e nem sempre o céu se mostra azul com esparsas nuvens brancas. Lidar com pessoas é antes de tudo um exercício de paciência, tolerância e respeito a si mesmo e ao grupo, conceitos que sacodem a nossa comodidade quando nos é colocado o desafio de liderar equipes em busca de resultados em empresas públicas.

Uma das observações mais assustadoras dessa convivência foi a que me fez constatar que aquilo de que falam os especialistas nos programas de televisão e nas revistas especializadas, quando se referem a relações interpessoais nas organizações e à “psicopatia corporativa”, não é ficção ou abordagem teórica distante. A palavra “psicopatia” choca porque nos remete aos serial killers dos filmes de ficção. Mas a psicologia identifica diferentes níveis desse transtorno. E o mundo corporativo parece ser o lugar perfeito para os ditos “sociáveis”.

Leva-se um tempo para reconhecê-los quando temos um nível de consciência que não nos permite julgá-los aos primeiros sinais. De imediato nos impressionamos com sua pseudo capacidade de trabalho, em seguida nos questionamos se a sordidez percebida é real, e depois não queremos correr o risco de parecer ridículos, carrascos ou invejosos. Sim, porque é assim que eles, com seus jogos e manipulações, nos fazem sentir. É assim, como vítimas, que eles se apresentam para os colegas e superiores quando alguém tenta desmascará-los. Os mais inteligentes conseguem virar o jogo e se dar muito bem sabotando sutilmente a imagem do outro.

E alguém pode se perguntar, como isso é possível em organizações com códigos de conduta bem estabelecidos? Elementar: empresas são formadas por seres humanos, pois não? A vaidade humana não resiste a um charme maquiavélico. É tamanha que para os líderes passa a ser importante ter ao seu lado pessoas que nunca dizem não e espelham exatamente aquilo que eles (líderes) acreditam. E alguém com esse distúrbio da personalidade sabe ser um aliado fiel enquanto essa condição garantir os seus interesses.
 

Royal Shakespeare Company: Macbeth trailer
Fonte: YouTube


Bom, o alento é que dá para escapar com vida. Existe um mantra poderoso para afastar mau olhado e maledicências: ler os clássicos. Shakespeare, por exemplo. Poucos compreenderam a alma humana de forma tão profunda, o que pode ser medido pela complexidade de suas personagens. Foi lendo-o nas noites para acalmar as inquietações do dia que entendi a dimensão da infelicidade dessas pessoas, e encontrei forças para estar de pé nas manhãs. Travei um bom combate, não tenho dúvidas. Talvez não haja vencedores nesta batalha, pois falta aos psicopatas a consciência do erro ou da derrota, estão sempre prontos para uma nova situação por acreditarem piamente nas suas próprias justificativas. Todavia conhecer os seus métodos nos motiva a lutar pelo justo e pautar atitudes em conceitos éticos. Cria-se, como antídoto, uma corrente do bem. É dela que emana a voz que me diz: valeu a pena!

Fico feliz quando do lado iluminado dessa história (sim, porque ele existe, é forte e bonito de se ver!) me chega um convite para sentar à mesa e me deixar contagiar pela energia do encontro.

2 comentários:

  1. excelente reflexão (e bem escrito). como isso é tão comum q chega a desestabilizar nossa alma e nosso ser. preciso ler os clássicos.

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    1. Obrigada! Ainda acredito na força da palavra, e no lado iluminado das histórias. Volte sempre!

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Obrigada pela visita! Volte sempre.