sábado, 3 de novembro de 2018

Crucifica-o! Crucifica-o!


Diante dos horizontes próximos,
aflige-se o meu coração.
Não sei se é o tempo da chegada,
ou sempre o da navegação.


(Cecília Meireles, Voz do profeta exilado)


A duna antes do mar, por Sergia A.


Das leituras de 2018, a que me causou maior impacto foi, talvez, O Ministério da Felicidade Absoluta, da indiana Arundhati Roy (2017), feita ainda no início do ano. Leitura difícil e ao mesmo tempo desafiadora e envolvente, daquelas que não se pode largar pela metade. Difícil porque parte do mundo descrito pela autora é aquele que repugnamos, que fazemos de conta que não existe, das pessoas que vivem à margem (no seu país de origem, os pobres, os nascidos em castas inferiores, os transexuais, os guerrilheiros separatistas na Caxemira). Desafiadora pela escolha da narrativa fragmentada para dar conta de uma sociedade estilhaçada. Envolvente porque quanto mais avançamos nas páginas mais compreendemos que seu tema se desloca do particular (a Índia e seus conflitos internos seculares) para o universal, como realidade tão próxima de quem vive os dramas de uma sociedade caracterizada por uma imensa desigualdade social.

Isso me vem tanto tempo depois porque, diante da realidade dos nossos dias e seguindo um conselho de Harold Bloom, saio à caça de serenidade e sabedoria na fonte que me é mais próxima: a Literatura. Deixo a filosofia e a sapiência cristã (apesar do título, que é apenas uma provocação) para outro momento. Nesse caso, a sabedoria está na delicadeza com que a narrativa harmoniza as vozes diversas desse universo com as vozes do outro onde vivem altos funcionários, políticos, filhos de castas superiores, intelectuais, profissionais liberais. Separados e unificados pela mesma violência, não apenas simbólica. É no corpo conflituoso da personagem central, um hermafrodita com corpo masculinizado e alma feminina, cuja tentativa de transexualidade lhe retira a voz doce e musical da infância para lhe presentear com uma voz rouca que soava como duas vozes brigando uma com a outra (p.40), que se revela a profundidade do conflito social do corpo nação. 

E como isso pode ser uma resposta serena à tristeza dos nossos dias? Bom, a ficção tem o poder de nos retirar por um instante do real que suscita paixões, mesmo trazendo no seu enredo todas as demandas de tais paixões. Ali experimentamos e exercitamos a imaginação como algo que está distante de nós, trazemos para dentro, comparamos, compreendemos aquilo que o calor da paixão e a leitura do real nos impede.