sábado, 12 de março de 2016

Do elogio à serenidade


O caos é uma ordem por decifrar.

(José Saramago, in O homem duplicado - como 
citação do inexistente Livro dos contrários)



o camaleão, por  Sergia A.


Ideológico. Meu voto foi sempre ideológico. Por ideológico, que fique claro, quero dizer que defende uma ideia ou um conjunto delas. Nunca fui pressionada para votar em parentes ou amigos. Até tive amigos políticos, mas quando receberam meu voto ou ajuda nas campanhas, foi porque naquele momento compartilhávamos as mesmas ideias. Nem sempre ganharam eleições, pelo contrário, amargamos doloridas derrotas. Nas vezes em que deu certo, nem sempre o trabalho dos eleitos atendeu completamente às minhas expectativas, em outras foi decepcionante. Ainda assim, meu voto continua sendo racionalmente ideológico. Sou teimosa. Acredito em ideias que viram projetos. Aprendi que há um tempo para todas as coisas.

Digo isso em resposta a uma provocação que afirma ser esse um pensamento atrasado. A queda do muro de Berlim teria também transformado em poeira a ideia de esquerda e direita. Para não me acusarem de sectarismo, recorro a um filósofo italiano, muito respeitado pela social democracia brasileira (antes da guinada para a direita) para dizer que enquanto houver uma acentuada desigualdade social no mundo, a esquerda e a direita estarão mais vivas do que nunca. Para o filósofo Norberto Bobbio (1909-2004) a diferença entre direita e esquerda é que a primeira reúne as forças que desejam a manutenção do "status quo", a partir do pressuposto de que a desigualdade é uma fatalidade impossível de mudar (uns merecem outros não). A esquerda, por outro lado, reúne os que acreditam na possibilidade de mudar o mundo, de criar uma sociedade menos injusta. Meu coração, impulsivo e aventureiro, se derrete em simpatia pelo segundo grupo. Nunca consegui acreditar que comunistas comiam crianças, embora tenha sempre manifestado minhas críticas quanto aos erros do chamado 'socialismo real'.

Digo isso e cito Bobbio também por conta do caos que uma investigação inspirada na operação Mani pulite, da Itália (1992-1996), associada à sede de poder de grupos políticos rejeitados nas eleições e à grande mídia - porta-voz do que defino como direita - instalou no país. O filósofo foi crítico da influência de poderes invisíveis na sociedade (o videopoder), sem contraposição, e do excessivo poder dos juízes na citada operação. O caos instalado é nefasto e tem nos impedido de reagir a mais uma crise do capitalismo mundial, apesar dos fundamentos econômicos fortes de que dispomos. Não estou aqui a defender a não punição de práticas ilícitas de governos de esquerda (se elas existirem, de fato) ou a discordar do combate ostensivo à corrupção. Estou apenas a observar o caos e a tentar decifrar a sua ordem.

A importação do modelo partiu do pressuposto de que tal qual a Itália, temos uma corrupção histórica e arraigada, cenário econômico não favorável, governo de esquerda ideologicamente desacreditado (após a queda do 'socialismo real'). Esqueceram, no entanto, que a situação italiana exigia os holofotes da mídia,  com vazamento de informações e apelo à opinião pública, não apenas como estratégia de pressão para que os presos 'pré-julgamento' confessassem seus crimes, mas também para proteção de juízes e promotores uma vez que do lado de lá a corrupção era fortemente aliada ao crime organizado, e o governo tinha poderes para manipular informações. Prerrogativas que por aqui parecem não se justificar, considerando que não podemos negar que a nossa grande mídia funciona como um partido de oposição aos governos de esquerda, e ainda, que nos últimos anos foram tomadas várias medidas destinadas a tornar a administração pública mais transparente e fornecer estrutura e autonomia às instituições responsáveis por fiscalizar, investigar e julgar tais crimes. Um processo ainda muito distante do ideal, mas finalmente iniciado depois de séculos de corrupção e governos de direita.

Das minhas teimosias, a esperança talvez seja a mais forte. Há esperança de que as semelhanças fiquem por aí, e que a inspiração não tenha vindo do resultado final. A Mani pulite foi responsável pela destruição dos partidos de esquerda e centro (por lá não se concentrou em um único partido), e, consequentemente, pela chance dada ao oportunismo do neoliberal (nome bonito para a velha direita) e magnata da comunicação Silvio Berlusconi. Silvio se manteve no poder por muitos anos, apesar de todas as denúncias de seu envolvimento em corrupção e outros crimes. A Itália tem hoje índices de corrupção preocupantes e sua crise econômica continua sem saída. Do lado de cá, meu desejo é que haja serenidade para escolha de outro caminho. Ou como diria o velho Bobbio, que a serenidade permita a manifestação de cidadãos "virtuosamente democráticos", comprometidos com o combate ao preconceito e prática cotidiana de tolerância. E o combate à corrupção? esse também se fortalecerá na medida em que a transparência nos transforme em cidadãos virtuosamente democráticos.


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