O caos é uma ordem por decifrar.
(José Saramago, in O homem duplicado - como
citação do inexistente Livro dos contrários)
o camaleão, por Sergia A. |
Digo isso em resposta a uma provocação que afirma ser esse um pensamento atrasado. A queda do muro de Berlim teria também transformado em poeira a ideia de esquerda e direita. Para não me acusarem de sectarismo, recorro a um filósofo italiano, muito respeitado pela social democracia brasileira (antes da guinada para a direita) para dizer que enquanto houver uma acentuada desigualdade social no mundo, a esquerda e a direita estarão mais vivas do que nunca. Para o filósofo Norberto Bobbio (1909-2004) a diferença entre direita e esquerda é que a primeira reúne as forças que desejam a manutenção do "status quo", a partir do pressuposto de que a desigualdade é uma fatalidade impossível de mudar (uns merecem outros não). A esquerda, por outro lado, reúne os que acreditam na possibilidade de mudar o mundo, de criar uma sociedade menos injusta. Meu coração, impulsivo e aventureiro, se derrete em simpatia pelo segundo grupo. Nunca consegui acreditar que comunistas comiam crianças, embora tenha sempre manifestado minhas críticas quanto aos erros do chamado 'socialismo real'.
Digo isso e cito Bobbio também por conta do caos que uma investigação inspirada na operação Mani pulite, da Itália (1992-1996), associada à sede de poder de grupos políticos rejeitados nas eleições e à grande mídia - porta-voz do que defino como direita - instalou no país. O filósofo foi crítico da influência de poderes invisíveis na sociedade (o videopoder), sem contraposição, e do excessivo poder dos juízes na citada operação. O caos instalado é nefasto e tem nos impedido de reagir a mais uma crise do capitalismo mundial, apesar dos fundamentos econômicos fortes de que dispomos. Não estou aqui a defender a não punição de práticas ilícitas de governos de esquerda (se elas existirem, de fato) ou a discordar do combate ostensivo à corrupção. Estou apenas a observar o caos e a tentar decifrar a sua ordem.
A importação do modelo partiu do pressuposto de que tal qual a Itália, temos uma corrupção histórica e arraigada, cenário econômico não favorável, governo de esquerda ideologicamente desacreditado (após a queda do 'socialismo real'). Esqueceram, no entanto, que a situação italiana exigia os holofotes da mídia, com vazamento de informações e apelo à opinião pública, não apenas como estratégia de pressão para que os presos 'pré-julgamento' confessassem seus crimes, mas também para proteção de juízes e promotores uma vez que do lado de lá a corrupção era fortemente aliada ao crime organizado, e o governo tinha poderes para manipular informações. Prerrogativas que por aqui parecem não se justificar, considerando que não podemos negar que a nossa grande mídia funciona como um partido de oposição aos governos de esquerda, e ainda, que nos últimos anos foram tomadas várias medidas destinadas a tornar a administração pública mais transparente e fornecer estrutura e autonomia às instituições responsáveis por fiscalizar, investigar e julgar tais crimes. Um processo ainda muito distante do ideal, mas finalmente iniciado depois de séculos de corrupção e governos de direita.
Das minhas teimosias, a esperança talvez seja a mais forte. Há esperança de que as semelhanças fiquem por aí, e que a inspiração não tenha vindo do resultado final. A Mani pulite foi responsável pela destruição dos partidos de esquerda e centro (por lá não se concentrou em um único partido), e, consequentemente, pela chance dada ao oportunismo do neoliberal (nome bonito para a velha direita) e magnata da comunicação Silvio Berlusconi. Silvio se manteve no poder por muitos anos, apesar de todas as denúncias de seu envolvimento em corrupção e outros crimes. A Itália tem hoje índices de corrupção preocupantes e sua crise econômica continua sem saída. Do lado de cá, meu desejo é que haja serenidade para escolha de outro caminho. Ou como diria o velho Bobbio, que a serenidade permita a manifestação de cidadãos "virtuosamente democráticos", comprometidos com o combate ao preconceito e prática cotidiana de tolerância. E o combate à corrupção? esse também se fortalecerá na medida em que a transparência nos transforme em cidadãos virtuosamente democráticos.
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