sábado, 9 de abril de 2016

Sobre afeto e movimento




Mas o que acontecerá, se a missão de um homem exige 
que ele só conheça o vínculo com sua causa, e então 
desconheça qualquer relação atual com um TU e a 
a presentificação do TU, de modo que tudo aquilo que 
o envolve se torne um ISSO, um ISSO útil à sua causa?

(Martin Buber in Eu e Tu, trad. Newton Aquiles von Zuber)



O diálogo não é a conversa entre iguais, não é apenas uma fala
complementar, mas a conversa real e concreta entre diferenças
que evoluem na busca do conhecimento e da ação que dele deriva.

(Marcia Tiburi in Como conversar com um fascista - Revista Cult)




o céu na minha janela, por Sergia A.



Depois de alguns dias de desânimo, pulei da cama. Contra todos os argumentos do meu corpo levantei e mostrei a ele outra possibilidade, além do medo. Pus o maiô, peguei minha sacola e sai mastigando uma barra de cereal. Cinquenta minutos de braçadas, meus músculos pedindo colo, aproveito a fluidez da água para fazer alongamentos e exercícios de respiração. O silêncio interior amplia os ouvidos. Escuto a algazarra das crianças a algumas raias de mim. Meninos entre oito e doze anos, no máximo, decidindo por um jogo aquático que encerraria o treino. A professora propõe:
- Marco Polo ou Voleibol?
- Marco Polo, gritam três.
- Voleibol, gritam os outros dois.
- Decidido! diz a professora já se organizando para iniciar o tal Marco Polo. Eis que um deles diz com voz de choro carregada de mágoa:
- Ah! tia assim não vale! já foi Marco Polo na aula passada!
Ela se aproxima dele, chama-o pelo nome, olha nos seus olhos e diz com voz afetuosa:
- meu filho, fizemos uma votação e a maioria decidiu por Marco Polo, vamos respeitar? Na próxima, quem sabe...
E o jogo prosseguiu com muita alegria. Sai da piscina sentindo uma leveza que parecia não ter origem apenas no elastecer das minhas articulações viciadas.

Agora sento-me aqui diante de uma tela em branco, e essa historinha boba é a primeira coisa que me vem. E por que registrar? Bom, acompanhamos perplexos o caos que sacode os nossos dias, com suas ondas que misturam autênticas insatisfações, angustiantes incertezas, grandes doses de oportunismo e hipocrisia, e um subproduto mais grave: a intolerância fomentada por políticos, células eletrônicas extremistas e meios de comunicação de massa. A crise econômica se tornou real como parte disso. A crise política não aponta saídas. Em se confirmando a derrubada do governo pelos motivos apresentados, todos os sucessores legais descerão pelo mesmo ralo. Havendo novo processo eleitoral, que garantias teremos de que seu resultado seja aceito ou de que não se recomece um novo ciclo?

Adoro exercícios de imaginação. Na piscina minha mente, em sintonia com meu corpo, flutua. Fico a imaginar onde poderíamos chegar se toda essa energia até aqui desperdiçada se voltasse para a construção de um projeto de nação. Se tivéssemos aprendido com os erros do passado e olhássemos para o futuro com o desejo de torná-lo grandioso para mim e para o outro. Se de fato fôssemos o povo aberto, alegre, amistoso que parecíamos ser enquanto uma camada silenciada por séculos se mantinha contida. Ou, antes que o outro aprendesse a se manifestar, a discordar e a exigir uma pontinha do seu lugar ao sol. 

Foi entre braçadas do crawl que lembrei de uma entrevista, para um canal estrangeiro, de um músico brasileiro, negro, com formação erudita, que é mestre de coral em Viena. Talvez com alguma mágoa, mas com o entusiasmo dos que venceram, ele relatava as dificuldades enfrentadas em uma conceituada universidade pública brasileira: "Me disseram: “Você não vai ser músico” sem nenhum critério técnico. (...) "Há um racismo velado nessas instituições tradicionalmente voltadas para a elite porque ninguém se assume racista. Jamais disseram para mim: “Luiz, você não vai dar certo na música porque você é negro”. Mas me pergunto se essa não foi a motivação da pessoa." (que disse que ele não seria músico, explicação minha). Acrescento, por outro lado, que o nosso preconceito maior é o de classe. Não suportamos ceder o lugar a alguém que, de acordo com nossos padrões mentais, não deveria ocupar aquele lugar que parecia ser meu por direito divino. Quantos luizes desistiram no meio do caminho?

Foi entre braçadas do costas que me dei conta de que, nestes anos perdidos, não é a corrupção que nos incomoda, apesar de seus efeitos nefastos. Para o seu combate temos leis e instituições fortes, sem prejuízo do aperfeiçoamento que sempre será necessário, obviamente. A julgar pelo andar da carruagem, carregada de interesses pessoais, é fácil perceber que o que nos afeta parece ser o medo. Sim, talvez nos falte coragem de olhar, com afeto, as nossas diferenças, suas origens e as razões de sua perpetuação. Talvez nos falte coragem de reconhecer que a presença do outro exige que olhemos menos para o nosso umbigo. Talvez nos falte coragem para pensar, quando é mais fácil pegar pronto e repetir sem questionar consequências. Talvez nos falte coragem de aceitar que o jogo de nossas vidas minúsculas, ainda que proposto pelo outro, pode nos render gritos de alegria. 

Sim, sai da piscina mais leve. A dor momentânea faz parte da necessidade de movimentar o que ficou por muito tempo imobilizado. E só agora, espiando a tarde cair sobre minha varanda, eu compreendo o porquê. Lá, bem longe, uma andorinha corta o céu em seu voo solitário. O processo da escrita é, deveras, libertador.



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