sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

O apartamento





A imaginação tem todos os poderes: ela faz a beleza, 
a justiça, e a felicidade, que são os maiores poderes do mundo.

Blaise Pascal (1623-1662)
(matemático, físico, inventor, filósofo e teólogo católico francês)





Ao frio ao vento, por Sergia A.




Já passava da meia-noite. Larguei a biografia de Blaise Pascal em um canto da poltrona e fiquei ali tentando agarrar o sono. Esses estudos de matemáticos medievais me tiravam o fôlego por alimentar, em demasia, a minha imaginação. Aliás, tinha acabado de ouvir dele as palavras que ora uso como epígrafe, mas o que eu queria era apenas o poder de dormir. Sabe aquele interstício, aquela zona estreita, quando você não está lá e nem cá? Pois era exatamente ali que eu me encontrava quando o telefone tocou. Meu corpo tremeu levemente diante da indecisão. Deveria atender ou não? No peito uma sensação terrível de que o meu equilíbrio estava por um fio. Àquela hora só poderiam ser duas coisas: má notícia ou uma tentativa do já manjado golpe do sequestro. Preparei-me para a segunda possibilidade. Se ouvir choro, não pronunciarei o nome dos meus filhos. Ainda atordoada atendi.


- Amiiiiiiga! que bom que tu ainda não estás dormindo! estou precisando muito falar contigo!

Foi o sinal para que o tremor tomasse conta de todo o corpo e me levasse rapidamente para a primeira opção. Só isso faria uma pessoa fina, criada e educada no Sul, ligar de tão longe àquela hora da noite. Só me restava engolir seco, respirar fundo, acalmar a voz e dizer:

- pois não, querida! cê sabe que pode contar comigo em qualquer circunstância!
- lembra daquele apartamento aqui no Paraná, ali em Guaratuba, que...
- a par ta men to? 

Soletrei cada sílaba sem conseguir disfarçar minha irritação.

- sim, guria. Aquele que me ofereceram e fomos visitar por duas vezes... mas a construtora ainda estava reformando, prometendo mundos e fundos para me conquistar?
- ah! sim, agora lembro.
- então, tava aqui lendo a tal sentença e tive uma ideia. Liguei para um adevogado, meu amigo de escritório daí!

Respirei mais fundo ainda. A vontade que tive foi de bater o telefone (sim, ainda uso o fixo). Como alguém em sã consciência poderia interromper o sono do outro para ficar divagando sobre processo jurídico? No entanto, antes que o meu braço descesse (tá vendo a vantagem do fio?), me dei conta de que ela podia não estar bem. Sozinha naquele frio infernal (ops! o inferno é quente, né?). Melhor dizendo: naquele frio invernal (isso parece pleonasmo... bom, mas pra mim nascida em uma terra sem estações existe frio de primavera, frio de outono... deixa como está e voltemos ao que interessa), ela podia estar precisando de alguém para conversar e inventou a primeira coisa que lhe veio à cabeça ou, talvez, tivesse tomado uma taça de vinho a mais. 

Recompus-me a tempo. Lembrava perfeitamente dos dias em que, de férias por lá, a acompanhei na visita ao imóvel. Lembrava também que depois da segunda visita ela me confessara que tinha perdido o interesse. Se não estou enganada falou em algo sobre a localização. Emendei a conversa.
- advogado?
- sim, ele me disse que se eu arranjasse testemunhas idôneas das minhas visitas, ele juntaria a minuta do contrato de compra/venda que eles me enviaram e...
- pelo que me recordo não foi nem assinada. Não tou entendendo direito o que você está falando.

Apelei cheia de cuidados e já quase concluindo uma teoria sobre sua saúde mental.

- Guria, tu além de idônea continua sendo a mesma tonta de sempre. Presta atenção no que me disse o adevogado: se juntar o documento sem assinatura, as testemunhas da visita e o comprovante do pedágio da estrada já temos indícios fortes! E depois tu não lembras que fizemos uma selfie na varanda? lembras que usei o pau-de-selfie bem comprido para aparecer o detalhe da fachada que eu tinha gostado? (ela é mais moderna e afeita a tecnologias que eu). Então? quando mostrei a fotografia no celular com data, hora, localização, ele disse que tava ganho. Diz ele que um procurador, amigo íntimo, afirmou que era prova e não indício.
- Sei.

Àquela altura já não sabia se era o sono, apreensão sobre o estado de saúde da minha amiga ou se eu era mesmo ingênua, burra, sei lá o que. Abandonei a estratégia e fui sincera:

- continuo sem entender nada! enlouqueceu de vez, foi? 
- Fique calma, vou explicar tudo direitinho. Preciso de você como testemunha no processo que vamos dar entrada na justiça aqui em Curitiba. O adevogado jura que serei declarada proprietária. E que se recorrerem para uma instância superior eu ganho é o apartamento todo montado porque a pena ao acusado de não me entregar as chaves será maior. 
- que diabéisso! e o monte de defeitos que botastes na escada?
- então, amiga...  nestas circunstâncias daí...  até injeção na testa!
- mermã do céu, eu tou morrendo de sono. Sei que cê tá eufórica, mas deve estar bem cansadinha também. Conheço bem tua rotina de trabalho. Conversaremos amanhã. Não se preocupe, estarei sempre do teu lado. Beijos!

Acho que ainda ouvi lá longe o entusiamo dela quase gritando "a Lei é para todos!! Beijinhos! Tchau, querida!". Desliguei o telefone. Deitei e cadê o sono? Minha amiga linda e tão inteligente estaria louca? o tal advogado existiria? a tal sentença existiria? enlouqueceram todos? Ou fui eu que enlouqueci? Teria sonhado? O telefone realmente teria tocado?
Por via das dúvidas levantei, fiz um café, sentei à escrivaninha e escrevi este conto... em ficção tudo pode, né?

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