sábado, 7 de abril de 2018

Liberdade, liberdade



Aproveita hoje, seu coração em festa
Amanhã
vai que a vida desembesta.


[André Gonçalves, Bandeirolas - Pequeno Guia das Mínimas Certezas]



sob o sol, por Sergia A.


Comecei a escrever este texto no dia em que o principio da Liberdade, estabelecido na Constituição de 1988, perdeu um grau na escala garantida pela Lei. A minha intenção era discorrer sobre o tema. Escrever como um exercício que me permitisse entender por que esse, que foi um bem tão precioso naquela década, agora se torna algo negociável e que pode se colocar abaixo de outros bens como a propriedade, como a moral messiânica de grupos, ou, simplesmente, como algo banal que perdeu o significado.

Fui atropelada pelos acontecimentos que se seguiram à madrugada que dividiu os dias 04 e 05 de abril. Achei por bem esperar a poeira assentar para que o pensamento me saísse organizado e sem precipitação. Pois bem, estou aqui na madrugada que absorve a desobediência civil do ex-presidente, como dizem muitos, e o meu sono não vem. Fico imaginando os que estão lá, neste momento. Milhares de brasileiros vigiando um sono ainda liberto, se é que esse também não deu as mãos ao meu e saíram por aí a passear.

Não discuto o tal processo, nem os procedimentos jurídicos e midiáticos e muito menos o caminho escolhido pelo ex-presidente. Também não discuto, neste instante, os erros da esquerda no poder (já fiz isso em outras ocasiões). Primeiro por não ser jurista, e segundo porque isso é o que menos importa neste instante. A questão principal está no que o vento vem soprando nos últimos anos, moldando ondas lentamente, ora frágeis ora impetuosas. Desde as manifestações inexplicadas de 2013, passando pela instabilidade econômica e política de 2014 e 2015 insufladas por uma operação anti-corrupção seletiva e com objetivo, hoje, muito claro. Até o afastamento de uma presidenta, que não cometeu crime durante o mandato, e implantação de uma agenda neoliberal, financista e completamente voltada aos interesses do mercado. Ou seja, a questão principal parece ser a necessidade de decifrar do caos, uma pista sobre o que o futuro nos reserva.

Nesse ínterim, chegou até mim o resultado de uma pesquisa desenvolvida por um grupo coordenado pelo economista francês Thomas Piketty, publicada em dezembro de 2017, que aponta no nosso amado país a maior concentração de renda em 1% da população, em comparação com outros países. Segundo seus dados, os milionários brasileiros estão à frente dos milionários do Oriente Médio. Se o recorte for de 10% da população, aí perdemos para o Oriente Médio, mas nos igualamos à Índia e ficamos acima da África Subsaariana. O que isso quer dizer? No mínimo que, em um país em que dois séculos de independência não foram suficientes para desfazer a visão colonialista e escravocrata de sua sociedade, há algo muito errado. Um país que não entende que o seu capital principal está no desenvolvimento das pessoas independente da sua origem, cor, gênero, orientação sexual, permanece assentado em algo muito errado. Um país que não entende que a liberdade dos seus cidadãos é um bem primordial, capaz de engrandecê-lo como nação, permanecerá mergulhado em algo muito errado. 

É estarrecedor ouvir de políticos e jornalistas conservadores que os treze anos de governo progressista (os únicos em 518 anos, pasmem!) são responsáveis pela divisão do país. Não. Não são. O país está dividido, há séculos, pela desigualdade social. Os tais treze anos foram apenas suficientes para que a parte esquecida, que é maioria, descobrisse que tem direitos, que pode se alimentar adequadamente, que pode ter um emprego formal, que pode discutir com os patrões o valor do serviço doméstico prestado, que pode sonhar para seus filhos um futuro diferente de seus ancestrais. Engana-se quem imagina, simploriamente, que o que vemos hoje se resume à idolatria a um líder populista. O que as pesquisas de intenção de voto indicam, de fato, é o desejo de ascensão, é o desejo de oportunidades que se tornaram palpáveis e são canalizados na voz desse líder.

Mas voltando ao ponto que me levou à tela em branco, é também estarrecedor ouvir dos opositores ditos liberais, ainda que sob o manto do Liberal Conservative inglês, o regozijo pela perda de um direito constitucional. Um direito que garante a liberdade que dizem estar na base do seu pensamento. É estarrecedor perceber que um princípio tão caro possa ser negociável dentro de sua lógica mercantilista de visão curta. O que nos aguarda no futuro, se abrimos mão de garantias individuais em nome de um discurso moralista que prepara o caminho para governos ditatoriais de direita, de esquerda ou teocráticos? 

Já se foi a metade do dia seguinte. Ligo novamente os canais de TV alternativos que pipocam na internet minando o discurso hegemônico da mídia tradicional. Vejo o grande líder do povo assumir sua condição de prisioneiro, vítima, neste instante, da redução do princípio Constitucional, mas levado nos braços do povo. Uma imagem que toca o coração. Mesmo dos que, como eu, não o tem como um herói. Dos que conseguem separar, com clareza, os erros e os acertos. Esses inegáveis, é preciso reafirmar. É difícil viver este momento. Recorro à poesia que tem me salvado ao longo da vida. Se é preciso seguir com o coração em festa, vamos de mãos dadas, antes que a vida desembeste.


Não serei o poeta de um mundo caduco
Também não cantarei o mundo futuro
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças
Entre eles, considero a enorme realidade
O presente é tão grande, não nos afastemos
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas 


(Carlos Drummond de Andrade, Mãos Dadas)




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