segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Entre Silêncios e Entrelinhas



Foram-se seis meses do primeiro ano da segunda parte. Hoje meu delírio não nasce de uma experiência do laboratório, no entanto, de alguma forma, explica a minha vida dupla:


Atonement, by Joe Wright (2007)
Fonte: YouTube



Alguém disse certa vez que narrar é um exercício do perdão. Mais que redimir-se de uma culpa, de uma ofensa ou de uma dívida, o ato de narrar talvez se aproxime da busca de liberdade que só se realiza no percurso entre a mente que elabora o pensamento e a concretude da palavra que o liberta. Essa pode ser, por exemplo, uma leitura do livro Atonement, do escritor britânico Ian McEwan (2001), que na tradução brasileira recebeu o título de Reparação.

Dividido em três partes, o livro traz um narrador que conta em três fases a experiência de Briony, uma escritora que faz da sua escrita uma expiação, uma tentativa de dar um novo destino a personagens reais que um dia foram vítimas do mau uso de sua fértil imaginação. Na primeira, há uma Briony adolescente montando uma peça de teatro para uma reunião de família em um dia de verão anos antes do inicio da Segunda Guerra, quando por ciúme, despeito ou vingança, acusa o namorado da irmã de estupro da prima. Sem chance de defesa, Robbie é condenado injustamente, fato que afeta irremediavelmente a vida de Cecília (a irmã).

Na segunda parte, o leitor toma conhecimento de que, para livrar-se da pena, Robbie aceita ir para o fronte. E, acompanha seu intenso sofrimento em território francês nos dias da retirada de Dunkerque, suportado pela esperança do reencontro com Cecília. Sua morte é um final possível para o personagem de McEwan, mas não para a narrativa expiatória de Briony.

A terceira parte mostra uma Briony adulta. Enfermeira, durante o dia cuida dos soldados feridos, à noite escreve para lidar com os sentimentos que a perseguem. Faz uma visita à irmã, pede perdão e ouve dela que o perdão viria de uma reparação pública do nome de Robbie. A morte trágica de Cecília é também um final possível para a personagem do autor, mas não para o exercício de perdão de Briony. Era preciso dar um final feliz ao casal, como forma de desfazer a interrupção de vida por ela orquestrada. Assim é que no epílogo, cinco décadas depois, lemos uma carta de Briony, falando do seu livro, da sua escrita redentora. Robbie e Cecília finalmente são felizes para sempre, como personagens de sua narrativa. Só então nos damos conta de que o narrador da obra de McEwan é a personagem Briony, que narra em terceira pessoa para garantir a distância necessária ao doloroso exercício.

Com um roteiro adaptado por Christopher Hampton, e mantendo o mesmo título, o livro ganha as telas sob a direção de Joe Wright, em 2007 (Desejo e Reparação, na tradução brasileira). O diretor faz opção por uma tradução que respeita a estrutura narrativa do livro, mas na transposição consegue usar bem a linguagem do cinema. Tendo a própria câmera como narrador, o filme traz imagens marcantes realçadas por uma trilha sonora comovente, e atores fazendo um bom trabalho. Muito já se falou, mas vale à pena repetir um comentário sobre a delicadeza e a maestria da condução do plano sequência em que Robbie anda pela praia em Dunkerque, na espera para a histórica retirada rumo a Dover na Inglaterra. Uma bela homenagem aos milhares de soldados que viveram essa terrível realidade. No epílogo o Diretor, em decisão que engrandece o final da narrativa fílmica, substitui a carta de Briony por uma entrevista com a escritora, vivida nesta cena pela brilhante Vanessa Redgrave.

Fazendo uso de temas como o amor, a guerra, a competição entre irmãs, egoísmo, valores sociais e o perdão, o livro e o filme oferecem um fio para discussão do poder reparador da narrativa. Seja do processo de criação, que busca na experiência comum a força inesgotável que transforma imaginação em uma realidade assimilável pelo outro, e por isso é libertador. Seja do processo de apreensão de significados que encontra na experiência do leitor/espectador um encaixe para incorporação de uma realidade imaginada, e por isso é indutor da reflexão. Só assim, entre silêncios e entrelinhas, nos perdoamos do delito de viver.


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