quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Uma cruz no coração da América



Aqui sentimos de maneira inequívoca a presença do tempo,
tão rara nestas latitudes. (...) Não se exigem datas nem nomes próprios; 
basta o que sentimos de imediato, como se fosse uma música. 

(Jorge Luis Borges, colônia do sacramento in Atlas, p.123 trad. Heloisa Jahn)





Tunel do tempo
 
 
Ao longe, uma mancha azul recortando o horizonte. Do alto, picos matizados de neve. De perto, um certo assombro. Os Andes me fascinam. Desde sempre, inexplicavelmente. Talvez não seja um sentimento comum aos nascidos na América de língua portuguesa. A cordilheira não nos impõe sua presença. No entanto, nos mapas que de cedo aprendemos a rabiscar, em documentários e livros que nos habituamos a ver, nos relatos que ouvimos dos viajantes, ela está lá exigindo reverência. Dá forma ao continente e silenciosamente nos afeta. Visitei-a apenas duas vezes. Dormi em um dos seus vales meridionais. Vigiada por altas muralhas rochosas, vulcões adormecidos e espelhos de águas mansas. Uma oportunidade de me entregar aos mistérios da natureza.

Mistérios. Talvez venha daí o meu fascínio. Os mistérios que ela esconde. Talvez venha daí o aperto que invade meu peito ao ver Beyond El Dorado – power and gold in ancient Colombia, em visita ao British Museum (Londres, Nov/2013). Uma bem concebida exposição de artefatos em ouro, pedras preciosas, cerâmica, couro e tecido produzidos por povos que habitaram a Colômbia antes da chegada dos conquistadores espanhóis. Belas e tecnicamente complexas as peças pertencem ao Museo del Oro de Bogotá, e boa parte são achados arqueológicos retirados de sítios localizados nos vales formados pelas três ramificações da cordilheira na região (que infelizmente não fez parte das minhas andanças).


Palavras como Quimbaya, Muisca, Tolima, Calima ainda soam estranhas aos nossos ouvidos. Todavia, há milhares de anos, povos por elas nominados (assim como os Incas no Peru) moldavam e poliam ornamentos em metais, extraídos das montanhas, para uso em cerimônias e rituais que fortaleciam sua cosmovisão. Por vezes faziam oferendas para manter o equilíbrio do cosmo atirando-os nos lagos ou enterrando-os em tumbas. Mais que símbolos estéticos ou de poder, os objetos eram um meio de reproduzir o brilho do sol, as formas e sons da natureza. Um modo de religar-se ao reino espiritual. Aí se origina o mítico El Dorado que tanta cobiça despertou nos corações europeus do inicio do século XVI. Daí também a conveniência da Cristianização (o combate ao paganismo) como justificativa para domínio desses povos e confisco de suas riquezas.

Como a cordilheira, as peças vistas de perto arrebatam e desafiam a imaginação. Compreende-se facilmente as impressões fantasiosas contidas nos diários de Fernandez de Oviedo (Historia general y natural de las Indias, 1535/1548) ou do Frei Gaspar de Carvajal (Relatório sobre o novo descobrimento do famoso Rio Grande, 1541/1542) que alimentaram fartamente o mito. Assim como a disposição do cineasta alemão Werner Herzog para filmar, quatro séculos depois, Aguirre, der Zorn Gottes (1972) - Aguirre, A cólera dos Deuses, na tradução brasileira. Com foco na travessia dos Andes e entrada na Amazônia, o filme tem como mote uma suicida missão de espanhóis em busca do El Dorado. A narrativa é lenta e angustiante como a descida da balsa no meio do rio margeado por flechas inimigas. Irônica e envolvente traz à tona a noção do absurdo ao se concentrar nos devaneios e desconexão com o real que o isolamento e a hostilidade da natureza selvagem aprofundam. Impossível não associar imagens e significados ao posterior Apocalypse Now (Francis Ford Coppola, 1979). Outro tempo, outro espaço dominados pela mesma insensatez que parece não se cansar de existir.

 
Fonte: YouTube
 
 
De volta ao Museu, os estímulos visuais e sonoros nos guiam pelo ambiente propositadamente escuro da exposição. Percorrê-lo é ser transportado. É sentir, de imediato, a presença do tempo e dos descompassos que escorrem das veias latino-americanas. É como pernoitar na cordilheira e se arrepiar com o seu silêncio provocador. É, talvez, se expor ao risco de um clarão sob as imponentes colunas lá fora. É se descobrir parte de um passado que se dissolveu na névoa da história sob a proteção divina de uma cruz. Dizer o ver torna-se assim uma necessidade.

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