quinta-feira, 10 de julho de 2014

A resposta do espelho


A imagem
que de mim
fiz
para mim

cortei-a na minha 

propria carne

cicatrizes

se rompem
quando cresço

(Hans-Curt Flemming in Autorretrato trad. Rui Rothe-Neves)


O tempo da flor, por Sergia A.


Amanhece. Um raio de sol insistente invade as frestas da minha janela. Por trás dela, um céu azul com poucas nuvens. Levo a mão ao peito em um gesto instintivo. O coração voltou ao ritmo normal e uma folha em branco me seduz. As palavras me visitam, não para chorar o leite derramado ou encontrar culpados. Não para cantar o entusiasmo da copa das copas ou ceder à tentação de rir do fracasso da previsão de caos. Talvez, queiram apenas dar forma a novas questões que nascem do muito que se viu.

O esporte tem seus caprichos. Talvez, o mais instigante deles seja a eminênica da derrota. Para todo vencedor, um perdedor. No entanto, a primeira coisa que me vem, é o impulso de fazer distinção entre o que está fora e o que está dentro dos campos, para que se veja com clareza e sem fanatismo uma natural associação, ou não. Uma coisa é o desafio de organizar um evento desta magnitude. Outra é o desempenho da seleção do Brasil na competição. Sobre a organização, devíamos ao mundo e a nós mesmos a alegria de viver intensamente esta festa. Há uma razão simples: o futebol é unanimidade em toda a extensão continental do país, perpassando sua grande diversidade cultural. Parece que isso fala muito da imagem que tínhamos de nós mesmos quando da decisão. Assumir o risco de se expor faz parte do ato corajoso e necessário de olhar para si. 


A segunda, é perceber que é exatamente o prazer de viver a paixão por um esporte que nos força a rever nossas contradições fora dela. Não foram poucos os questionamentos. Não foram poucas as superações. O que vimos no espelho, muito mais do que a alienação alardeada pelos grupos que (propositadamente ou não) confundem a ideia de nação e governo, é uma consciência que se fortalece na discussão do que somos capazes de fazer ou, da imagem que queremos ver. Algumas vezes foi chocante o que se mostrou nos estádios, na midia e nas redes sociais. De um lado a torcida pelo caos que garantisse o surgimento de um novo herói. E aí valem xingamentos de cunho machista e sexual expondo a intolerância ao que não cabe na estreita visão de mundo dos seus autores. Assim como vale a revelação inescrupulosa do discurso reacionário que parecia ultrapassado ao se manter velado. De outro, a necessidade do ufanismo para reafirmar posturas. Velhas cicatrizes se reabrindo para expor o tecido não tratado. 

Sim, e a derrota no campo? É evidente que, como a maioria dos brasileiros, esse foi o jogo que eu não queria ter visto. Todavia, esquecendo a apatia dos atletas e o injustificável placar, quem assistiu aos jogos anteriores conhecia a superioridade do bem preparado adversário. Sem exaltação de talentos individuais e primando pela tática e humildade na correção imediata de erros pontuais, o grupo crescia a cada partida. Conhecedores que são do quanto lhes custou, em outros campos, a aposta cega em um “herói”, optaram por um time. Além disso, evita-se surpresas e minimiza-se a frustração se considerarmos que o fracasso é um resultado possível e que nem sempre podemos culpar o juiz. Daí a importância de traduzi-lo depois de uma boa noite de sono. 

Ergo a persiana. Meu despertar ensolarado me distancia das análises apressadas que enxergam a emoção vencida pela razão. A neurociência indica a existência de uma fértil conexão entre elas, geradora daquilo que chamamos criatividade. Por sinal, uma velha aliada que se ausentou do campo mas explodiu lá fora pronta para nos consolar. Meu despertar ensolarado me conduz de volta à frente do espelho. É lá, na imagem que hoje não me agrada, que posso identificar os sulcos mais profundos da minha pele arranhada. É também lá que posso detectar sinais de um tecido novo, que pode emergir se o tratamento for adequado. Dentro ou fora dos campos. 

P.S: minha janela continua pintada de verde e amarelo.

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