quinta-feira, 5 de março de 2015

Das coisas imprevisíveis


queria fechar-se inteiro num poema
lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena

(Herberto Helder in A Morte sem Mestre p.30)



janela para tardes douradas, por Sergia A.


Às vezes o mar me inunda de azul, ela dizia enquanto ajustava a câmera. O foco nas ondas. As ondas batendo forte sobre pequenos barcos. A água perdendo o azul. Corpo e lentes se dissipando na aquarela estendida no horizonte. O tempo  se repartindo em clicks e gotas ao vento. O excesso de luz dissolvendo cores, até que o dia, o horizonte e o corpo mergulhassem, de vez, na luminosidade do branco. Cabia a mim encontrar refúgio para o silêncio que a tormenta exigia. 

Às vezes uma janela me preenche de tardes douradas, ela dizia enquanto ajustava a câmera. O foco nas nuvens. As nuvens segurando os últimos raios do dia. O rosto e as lentes embrenhando-se na sequência de cores que a tarde arranjava na janela. O tempo esquecendo ponteiros e segmentando-se em ajustes de olhar. A luz escapando aos poucos, até que a tarde, a janela e o rosto mergulhassem, de vez, na escuridão. Cabia a mim abraçar o silêncio que a noite reclamava. 

Às vezes, um quarto escuro me transborda de interrogações, ela dizia enquanto uma fresta avermelhava suas mãos. Lençóis filtrando pedaços de luz. Outra se revelando por inteiro. Nuvens, tardes e ondas penduradas no varal sob o brilho do olhar distante. O tempo se diluindo no líquido derramado. Escorrendo entre seus dedos revestidos, até que nada mais restasse além dos reflexos endurecidos. Cabia a mim absorver o mistério daquela solidão. 

Uma câmera de lentes desfocadas anoitece o agora, ainda que a janela e o mar brilhem lá fora. O horizonte que a vista já não alcança. No quarto, os passos retidos pelos ponteiros que deixam de correr. Os olhos se fecham em um poema sem nexo. Cabe a mim a ousadia de escrever.

2 comentários:

  1. Vi ler o texto atentamente, Sergia. E achei bacana o modo como você fotoescreve. Parece ser um flash da vida tentando ser impresso no ato da fotoescrita e, ao mesmo tempo, o o projeto do olhar na (in)certeza do tempo em fagulhas, sorvido no âmago. É o resultado de contemplação e um precioso exercício com a palavra.

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    1. Obrigada, Assunção. Desculpe a demora em responder. Passei uns dias ocupada em outros assuntos. Muito obrigada, mesmo!!!! O seu comentário é muito valioso para mim.

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