segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Cartas da Itália: Perugia



l'occhio anela fessure
sa il fruscio
che fa la luce quando
scioglie la pupilla


        ***

o olho cobiça fendas
sabe o barulhinho
que faz a luz quando
derrete a pupila

(Vera Lúcia de Oliveira, in O olho/L'occhio
Tempo de doer/Tempo di soffrire, 1998 - trad. da autora)




Pela janela, por Sergia A.





Perugia, 17/10/2015

Querida L.


Os ares da Umbria me devolveram, por fim, uma respiração tranquila. Talvez a pureza da altitude (por aqui as cidades se formaram no cume das colinas, como podes ver pela janela do trem). Estou a algumas escadarias do topo de Perugia, mergulhada na arquitetura medieval e bem distante da moderna correria da cidade baixa. Ou, talvez, a recepção calorosa dispensada a um passaporte "brasiliano". Como faz bem ser olhada nos olhos. Como faz bem esse olhar que te eleva e te põe como igual. A origem comum das nossas línguas ajudando na compreensão do entusiasmo deles ao falar do "Brasile" desejado por seus antepassados, e dos estudantes que agora fazem o caminho inverso para ter seus dias de intercâmbio na Università per Stranieri di Perugia. Sob o efeito de tal encantamento e do silêncio da rua, dormi todo o sono que as noites de Florença me fizeram acumular.


um minuto de contato, por Sergia A.


A cidade me surpreendeu enormemente. Ao cheiro do pão e do azeite se acrescenta o do chocolate, que invadiu os calçadões. Além do olfato, outros estímulos atiçam meus sentidos. Foi assim que uma tarde me trouxe de volta os primeiros anos de universidade. Um tempo de muita esperança, de acreditar que um mundo sombrio poderia ser pintado em novas cores. Foi muito bom sentar na praça, despreocupadamente, e observar gente jovem a provocar os transeuntes. Ouvir os sons de idiomas diversos convivendo alegremente. Doar, ainda que à distância, um minuto do meu olhar. Voltei a sentir leveza, e começo a compreender o que me trouxe até aqui. Engraçado é que só agora, ao te escrever, me dou conta de que o acaso me ofereceu, naquela tarde, a preparação necessária para a visita à mística Assis. 



Luminária, por Sergia A.



O trem nos deixa no vale. Um carro nos leva ao ponto mais alto. Desço ruas estreitas, sem pressa. A ordem é abrir os olhos e encontrar Clara e Francisco em janelas floridas, em arcos de pedra que nos dão passagem, nas torres que desafiam o tempo, nos cafés ou lojinhas de souvenir, nas mochilas e cajados dos peregrinos que não externam cansaço, ou no céu que faz fundo azul para a revoada de andorinhas, entre uma chuva e outra. É entrar no cenário de Zeffirelli e viver os encantos de Irmão Sol, Irmã Lua (1972), que as reprises das sessões da tarde plantaram em minha memória. Embora as locações do filme tenham se estendido por outras cidades medievais, a atmosfera é absolutamente igual. Sei que é muito antigo pra tua pequena idade. Quem sabe na volta, sento contigo para rever. Asseguro-te que vale a pena conhecer a história do louco Francisco que andou descalço pelo mesmo chão que meus pés bem protegidos pisaram oito séculos depois. Não falo da personagem um tanto idealizada de Zeffirelli, ou da imagem santificada pela Igreja, mas a do homem que se irmana com todos os seres da natureza, o homem que olha e se vê no outro, e se despe da arrogância que lhe cerca para se compadecer da dor alheia.



do alto, por Sergia A.


Outra manhã. Do alto, as cores do outono se revelam para minha lente e dão a medida do frio que o vento me traz. Sinto uma vontade enorme de te abraçar, enquanto leio traduções de textos atribuídos a ele (escritos em italiano - uma língua ainda nascente, falada pelo povo - em uma época em que o Latim era a língua da erudição e da igreja). Do poema Dolce e sentire, origem do título do filme, brota uma paz repentina que desejo apreender e estendê-la a ti. Sim, doce é entender que fazemos parte de uma vida imensa e generosa. É dessa generosidade que nasce a arte e a poesia, o meu estar aqui e agora. Da mesma generosidade nasce a lucidez dos versos que ora me iluminam. Poeta brasileira-italiana que por aqui encontrou pouso para expressar, sem alarde, o seu incômodo com a dor do mundo. Cairam-me nas mãos entre um trem e outro (novamente o acaso!). Leio com atenção as palavras escolhidas e dispostas com maestria, e elas se aninham na minha alma. Sim, há um poder irresistível no gesto de olhar e o olho é o seu instrumento.

Amanhã um novo destino, e até lá mais algumas horas de trem e janelas. 
O teu chocolate já está bem acondicionado em um cantinho da mala. 

Beijos
tua
S.





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