sexta-feira, 15 de junho de 2018

Sobre angústia, lógica e futebol



a flor o espinho, por Sergia A.


Sabe aquelas horas nervosas que antecedem o jogo? então, perfeitas para visitar palavras e suscitar imagens. Pode parecer ilógico, mas é assim que dou vazão à angústia que o futebol me provoca de quatro em quatro anos. Sim, preciso confessar a heresia que é me afastar de algo tão presente na vida brasileira: não torço por nenhum time de futebol. Local ou nacional. Nunca vi um jogo em estádio e nem sei quanto pesa uma bola de couro. Aliás, nem sei se o couro ainda é matéria prima de uma bola nesse tempo de altas performances guiadas pela tecnologia. No entanto, de quatro em quatro anos visto as cores e sinto um aperto no peito na hora do hino. 

O que me salva são as palavras e as viagens que elas me proporcionam. Um exemplo, para que as coisas tomem um rumo mais concreto: antes do jogo começar visito o país adversário, sem sair do sofá. Se já tive a oportunidade de pisar naquele chão, busco palavras e imagens na memória ou na bagagem. Se não, procuro os poetas. Aqui vai outra confissão: tenho a mania de achar que um lugar é também o que se escreve. Do mesmo modo que o espetáculo proporcionado pelo futebol passa a ser um lugar. E nessa lógica meio sem lógica tomo asas. Não pensem que é tarefa fácil. Se o adversário vem do centro a que todos os olhares se voltam e se copiam, expressando-se em línguas cheias de poder como o francês, o inglês, o alemão, o espanhol, o italiano, está no papo. E não me tomem por poliglota. Está no papo porque as traduções abundam. E quando o danado vem do mundo periférico, de culturas invisíveis ou apagadas ainda que falantes oficiais das mesmas línguas? Respiramos fundo e mergulhamos na escuridão, até encontrar um verso que ampare um comentário todo prosa, disfarçado de naturalidade. As rédeas do coração devidamente retesadas tomam um alívio até serem completamente afrouxadas com um grito na hora do gol. 

Foi assim que na copa passada, diante da maledicência política e dos xingamentos que até hoje me envergonham, vesti azul e enfeitei as janelas de bandeirolas para ler Otávio Paz preenchendo uma página em branco com tinta verde. Isso me ajudou a engolir o grito que ficou indo e vindo na garganta de um jogo sem gols. E, em outro momento, encontrei o Samba Makossa estreitando relações entre Chico Science e o grande Manu Dibango da República de Camarões, para me manter inteira depois de ver a rede balançar tantas vezes. E segui até topar com o humor sarcástico do poeta Kurt Bartsch que, com seu estilo telegráfico, mandava um recado preciso sobre o futebol naquele dia que me envergonhou tanto quanto os xingamentos. Perfeito para o desânimo geral de hoje: A casa queimou até os alicerces. E o que/ Fez o humanista? / Estendeu o dedo e escreveu/ Na cinza fria: Nunca mais. / Ah, se ao menos tivesse vertido a / Sua água na casa em chamas. 

Às vésperas de outras horas nervosas aqui dentro e um pano de fundo tão vergonhoso quanto o sete a um que nos assombra, dou início ao ritual e ouço uma voz que me diz que futebol não é causa e nem cura de nossas mazelas. Antes, parece ser um jeito de estimular o prazer de sonhar outros mundos. 

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