domingo, 29 de julho de 2018

Azul é a cor da distância


All
are gone.
Now I am learning
of where the seed sprouds in the soil,

[Frank Davey, The Arches p.41]



voo sobre o azul


Para L., que me ensina a ser aprendiz



Não faço segredo da minha necessidade constante de viajar. Dizem que meu elemento é fogo, portanto preciso de ar. De ares, melhor dizendo. Diversos, fluidos, leves e azul como só o ar sabe ser. Às vezes busco o passado, como fonte inesgotável de luz sobre nossa passagem pelo mundo, para me convencer de que sou resultado de um movimento que está além desta existência efêmera. Desta feita fui em busca de futuro, talvez de um fio de esperança. De mãos dadas com alguém muito jovem que, cansada de ser receptora de meus relatos distantes, queria assumir o papel de protagonista.

cedros 


Ela constatou rapidinho que não há nada de glamouroso em arrastar malas em esteiras a milhas e milhas de distância. Apertar-se cheia de náuseas na classe econômica, enfrentar o medo das turbulências, ser examinada com desconfiança nas fronteiras inventadas pelos homens, ter a mochila revistada milhares de vezes, ter o corpo invadido por raio x, justificar o pedido de entrada e explicar, em outra língua, a disposição de voltar rapidamente para o lugar demarcado como seu, como se lugares fossem partes inalienáveis de um corpo e não uma convenção administrativa.

No entanto, ela viu também que tudo se dilui no vento quando, tendo os pés firmes no chão, deixamos o novo ar invadir os pulmões permitindo ao cérebro o êxtase do olhar inaugural. De ver, de novo, tudo pela primeira vez.





Como parte do arranjo para nos aproximarmos da vida normal de um país estranho, nos matriculamos em um curso. Ver professores em sala, secretárias fazendo atendimento, e principalmente, conviver com gente das mais diversas origens seria o primeiro passo para entender que, por mais paradoxal que pareça, nossas diferenças nos tornam iguais. A outra parte foi recusar a comodidade de um hotel em troca de bobagens como ir ao supermercado e à padaria, errar na compra do café ou no uso da secadora, pegar ônibus, triturar o lixo orgânico na pia para que seus resíduos entrem no processo de compostagem e adubem o jardim (eu juro que as flores passaram a exibir outras cores). Ou, apenas fugir um pouco do estereótipo do turista que pelas bandas de lá busca paisagens estonteantes e esportes radicais. 


castelos de pedras sobre as pedras
Nesta tarefa contamos com a inestimável ajuda do verão, que se ocupou em estender o tempo curto da passagem. Com um dia de dezoito horas, aproximadamente, das quais mais ou menos seis eram dedicadas às aulas e leituras posteriores, restaram por volta de doze horas, ou seja, um dia inteiro para perambular em bibliotecas públicas, galerias, parques ambientais, bairros charmosos, restaurantes, cafés, sebos, feiras e mercados. Descobrir que nas praias as crianças fazem castelos de pedra e não de areia, e uma empresa privada as ofereceu um mundo fechado (mas de fácil acesso) em que os conceitos básicos das ciências exatas são repassados de forma lúdica e experimental, encantando também os adultos. Tempo suficiente para se perder e se encontrar, cair da bicicleta e levantar, ou simplesmente sentar para fazer companhia às gaivotas e absorver a serenidade de um por do sol sobre o Pacífico.


por do sol

E o futuro, onde estava? Bom, para quem vem do Brasil afundado em retrocessos e estruturas arcaicas, foi fácil localizá-lo em cada canto visitado. Antes devo dizer que sou do tipo que viaja e não se deslumbra. Gosto do ar mas tenho raízes e vejo muita graça no lugar sem graça em que vivo. Dificilmente me adaptaria ao que eles dizem ser terra estrangeira. Preciso voltar tanto quanto preciso ir. Todavia, penso que na configuração geopolítica atual o Canadá parece estar entre os melhores lugares para nascer. Digo nascer porque ser imigrante neste mundo de espaços demarcados, mesmo naqueles que se orgulham dos seus avanços neste campo, é ser eternamente alguém sem lugar. Preso às comunidades que se desenvolvem em torno das lembranças dos ancestrais como chinatownsgreektown, etc, ou alienando-se para parecer ser o que não é. 





literatura indígena
Mas, voltando à questão do futuro, foi por lá que vi, a poucos quilômetros do centro da cidade os mesmos cedros que inspiraram a arte de Emily Carr no inicio do século XX, demonstrando o funcionamento da política de preservação ambiental que caminha paralelamente com a indústria da madeira. Foi lá que vi a preocupação com a produção de alimentos orgânicos como meta de saúde pública. Foi na visita à universidade que percebi o respeito à cultura e à inclusão de descendentes de povos nativos. Foi por lá, também, que senti o respeito à identidade de gênero, à educação e à ciência. E, por fim, foi na escola que vi o funcionamento de uma política de integração de imigrantes em sua totalidade, respeitando suas crenças e lhes oferecendo oportunidades de trabalho que não se resumem aos serviços rejeitados pelos ditos "cidadãos naturais" (neste caso descendentes dos colonizadores ingleses ou franceses), como acontece nos países europeus que tive a honra de visitar, por exemplo. 



flores
É evidente que nem tudo são flores, apesar de serem belas as flores. Os loucos na rua que o digam, e não são poucos. O que descrevo é apenas uma impressão baseada em uma estadia curta e pode estar embaçada pelo meu desejo de futuro e de mostrar para minha companheira de jornada que outro mundo é possível. Isso me faz lembrar Alain de Botton quando disse que o exótico no estrangeiro pode ser aquilo por que ansiamos em vão em nosso próprio país, suprimindo o "em vão" porque vive em mim uma teimosa esperança.


Sim, penso no tipo de administração e organização interna que valoriza o crescimento das pessoas, como exemplo de futuro. Um futuro que pode emergir do azul da distância e se colocar a alguns passos de nós se retomarmos o caminho de pensar o país como um lugar para todos e não apenas para os que "merecem", por direito divino, o bom do mundo.

Espalhar sementes parece ser destino do vento.


biblioteca pública


2 comentários:

Obrigada pela visita! Volte sempre.