sábado, 2 de março de 2019

Sobre carnaval, ilhas e sinos



Nenhum homem é uma ilha, um ser inteiro em si mesmo;
todo homem é uma partícula do continente (...)
Também a morte de um único homem me diminui, 
porque eu pertenço à humanidade. 
Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram.
Eles dobram por ti.

(John Donne, trecho de Meditação XVII)
(trad. Luis Peazê - como parte de Por quem os sinos dobram de E. Hemingway)

a nuvem, por Sergia A.


Ando escrevendo pouco por aqui. Desmotivada pelo turbilhão de acontecimentos que nos deixam perplexas e apáticas. Ao comentar a bestialidade dos nossos dias, uma amiga me disse hoje que sentia-se como se estivesse mergulhada em um pesadelo, daqueles que não conseguimos acordar. A mesma sensação que se apoderou de mim ao ver o aparato de guerra que cercou a saída do presidente Lula para participar do velório do neto e os comentários dos haters que estão no poder. É isso, pensei me enchendo de esperança de que por mais aterrorizante que seja uma hora ele vai acabar. Afinal essa é a dinâmica natural de um pesadelo. 

Muitas outras imagens nos vem à mente em horas como essa, em meio a angústia que a morte de uma criança nos causa. Dormi abraçada com a minha neta de sete anos, agradecendo aos céus pela sua saúde e por ela estar comigo naquela noite, ou por eu estar em condições de abraçá-la. Mas uma imagem se impôs: a de um padre irlandês que foi meu professor no ensino fundamental. Um dia ele entrou na sala e escreveu no quadro a frase de John Donne que hoje me guia, e nos pediu que falássemos a respeito. O que viesse à cabeça diante da afirmação de que Nenhum homem é uma ilha. Só muito depois eu viria a conhecer o texto completo, e o livro de E. Hemingway. A essas alturas não lembro com detalhes, mas sei que na proposta de discussão estava o desejo de nos induzir o pensamento sobre a condição humana, ou o nosso pertencimento àquilo que chamamos humanidade.

E tudo isso no dia em que oficialmente começamos o carnaval. Um suposto tempo de alegria. O que me faz lembrar de outro padre que teve um papel fundamental para nosso despertar de outro pesadelo terrível: Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda. Na sua visão, um tempo de por um pouco de sonho na realidade dura da vida. Nos blocos ou nas escolas de samba há sempre o espaço para extravasar aquilo que nos sufoca. É bem a nossa cara transformar luta em festa, cantar para ter a voz ouvida foi o que nos ensinaram os mestres do samba, do jazz, e mais recentemente do rap. E nas ruas já se escutam os gritos. Assim como vimos da parte dos poderosos a demonstração do receio das reações populares. Não precisa muita esperteza para concluir que todo o aparato de guerra não era precaução contra uma possível fuga de um senhor de 73 anos carregando sobre os ombros uma dor imensa, mas uma profunda insegurança que nasce do medo de que o povo se levante.

Um avô disse adeus ao seu neto em um ato reverso, em um sábado de carnaval. Os olhos embaçados de tristeza viram a solidariedade dos que entendem que estamos interligados, que nenhum homem é uma ilha encerrada em si mesma. Voltou ao seu cárcere o homem que chora a sua noite solitária. Os sinos dobraram por um menino, que não teve tempo de se dar conta do quanto perdemos de nossa humanidade quando nos isolamos em nossas bolhas. O sino acorda a minha escrita. Talvez, a única forma de evitar pesadelos seja mesmo se manter acordada.

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