quinta-feira, 11 de abril de 2019

Dois modos de ouvir os oitenta e uns



Então irromperia um novo paradigma, vale dizer, uma nova 
consciência e de acordo com ela um novo modo de produção 
e de consumo que buscaria um acordo com as possibilidades
reais da Terra e as demandas sensatas e justas de toda 
a comunidade de vida, especialmente, dos seres humanos.

(Leonardo Boff, em entrevista ao portal Ideia Sustentável)


Chuva e flores no planalto central



Há alguns dias uma amiga me convidou para ver uma palestra de Leonardo Boff. Larguei tudo. Troquei de roupa rapidamente e fiquei de tocaia no portão como criança à espera de um brinquedo novo. Quando que, nesse tempo dominado pela falsidade e a surdez, eu teria nova chance de ouvir um intelectual desse porte assim de perto?

O auditório estava lotado, mas chegamos a tempo de encontrar um lugar para sentar. Dezenas de pessoas se espremiam pelas laterais. Gente de todas as idades. Mas o que me deixou mais feliz do que ficar acomodada em uma cadeira foi observar a presença animada dos jovens. Aplausos. Muitas palmas e um respeitável senhor de oitenta e um anos, com algumas mazelas pelo corpo, se pôs de pé no meio do palco. Trouxeram-lhe uma cadeira que ele recusou, prontamente, dizendo preferir sentir circular a energia.

Com uma firmeza na voz que contradizia seu cabelo branco, Boff fez uma análise profunda e serena da conjuntura política nacional e internacional apontando caminhos para o renascimento da esperança. Fez uma ligeira retrospectiva sobre seus livros e suas lutas, apenas para contextualizar e chamar a atenção para as razões de estarmos hoje diante de um quadro assustador. Na sua visão essa pode ser uma crise definitiva que antecede grandes transformações, de onde não se sairá sem uma ruptura com as forças que sempre nos mantiveram com o pé no freio. 

Dias depois um fato me chega pela TV, sem análise da conjuntura. Os conceituados analistas de TV estão surdos. Ainda assim o barulho se impôs como representativo da situação que vivemos nesse instante. A notícia tratava de uma ação do Exército brasileiro contra uma família no Rio de janeiro em um passeio dominical. Oitenta e uns disparos e a execução sumária de um pai de família, que não por acaso era negro e músico. 

O fato é simbólico como ato comemorativo dos primeiros cem dias do (des)governo de formação  majoritariamente militar, que teve como primeiro ato a extinção do ministério da cultura, que condena abertamente as políticas públicas e ações afirmativas para pessoas de cor e minorias, iniciadas nos últimos anos, e promove um indisfarçável aparelhamento ideológico de extrema-direita no ministério da educação com perseguição a reitores e professores de escolas públicas. 

Como não poderia deixar de ser, nem o Governador do Estado (mesmo partido do presidente) e nem as autoridades do Governo Federal (presidente, ministro da Segurança e da Justiça, comandante do exército) condenaram a ação ou assumiram publicamente o erro. O não agir como se espera que líderes de uma sociedade civilizada ajam é sinal claro de que a barbárie ultrapassou o discurso do então candidato, se encorporando às ações de governo. Esse era o grande temor dos que gritavam ELE NÃO durante a campanha eleitoral: que o discurso racista, homofóbico, machista, de ódio ao que diverge contaminasse a sociedade e suas representações. Agora já não é medo ou suposição. É a extensão de uma realidade nua e crua, infelizmente já muita conhecida das periferias das cidades em que o grupo, que chegou a todas as esferas de poder, se fortaleceu.

Salve-se quem puder! Grita para a esposa e o filho, o pai ferido. É o que ouvimos, à distância, no sibilar das balas. E a metáfora não é aquela de que o piloto sumiu, é preciso lembrar. Existe um comando, sim. Estamos sendo comandados por aqueles que acreditam na violência como solução. Na eliminação do que diverge e no apagamento da história. Pelos que entendem a palavra 'ordem' como o silêncio de jovens e obediência de crianças pelo medo. Pelos que substituem desenvolvimento sustentável com inclusão social pelo 'progresso' financeiro dos poucos privilegiados de sempre. 

Se a barbárie está instalada, só nos restam as mãos que não se soltam e o calmo pensar dos que esbanjam firmeza apesar dos oitenta anos. É dele o pensamento de que a libertação começa pela consciência de que fazemos parte de um todo cósmico. É essa consciência que nos dá hoje a certeza de que do outro lado somos muitos e somos mais. O pipocar de oitenta tiros tem o poder de assombrar mas também de despertar para a necessidade urgente de renovação da fé em uma ordem justa do mundo. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada pela visita! Volte sempre.