terça-feira, 4 de outubro de 2011

Lobos que Habitam em Nós


Liebestod  in Tristan und Isolde de Richard Wagner
por Waltraud Meier  - Teatro Scala Milão, 2007
Fonte: YouTube

No lugar onde nasci corriam lendas assustadoras. Era um tempo em que os adultos ainda sentavam na calçada para contar histórias, escutadas por corações aflitos. Ainda assim, ouvidas e internalizadas. Cresci dando como certo que a irmã mais nova de sete donzelas era marcada por uma triste sentença: ao fazer quinze anos viraria lobisomem nas noites de lua cheia. Cheguei aos treze anos com essa aflição entalada no peito. Era a mais nova de sete irmãs, todas ainda donzelas, e não era afilhada da mais velha, que seria a forma cristã de combater a maldição. Quantas noites de lua cheia insones, ouvindo os uivos distantes! Fui salva pelo gongo. Quando fiz catorze anos casou-se a irmã de numero três. Durante muito tempo acreditei que o casamento fora fruto da atenção dos céus a minhas fervorosas orações. Lembro disso agora ao ler o conto A Companhia dos Lobos da escritora britânica Ângela Carter, publicado no livro que faz uma revisão dos contos de fada: The Bloody Chamber , 1979 (O Quarto do Barba Azul na tradução brasileira).

O conto é uma recriação de Chapeuzinho Vermelho em que a personagem central, já não mais uma criança inocente, enfrenta com a rebeldia própria da juventude os dramas da adolescência e os medos que lhes foram incutidos pelos mitos e lendas da sua gente. Com uma narrativa em primeira pessoa do plural, a obra traz um narrador que tem o ponto de vista e a voz dos habitantes do mundo mágico onde a história se insere. Não à toa o recurso gráfico nos primeiros parágrafos do texto que utiliza letras grandes no início e vai reduzindo o tamanho até chegar à normalidade no fim do terceiro parágrafo quando descreve os olhos dos lobos e alerta para os sinais de risco.


O narrador conhece os fatos porque deles participa ou toma conhecimento pela comunidade ao seu redor, e os narra com os detalhes assombrosos com que as histórias paralelas lhes chegam aos ouvidos, demonstrando também sentir o pavor que a convivência com o perigo sugere e a necessidade dos olhos protetores da coletividade. Nos últimos parágrafos convida a todos para adentrarem pela porta do “solstício” (de inverno no hemisfério norte, é dezembro) que está escancarada no amanhecer da noite mais longa. Lá dentro revela-se surpreendentemente (o último parágrafo inicia com a expressão “Olhem!”) a representação simbólica da vitória da luz sobre a escuridão para o narrador e todos que o acompanham.

Na trama é a floresta, repleta de novidades com o olhar controlador dos adultos substituído pelos olhares dos lobos, que representa o caminho para as grandes descobertas. Segura de si, a “menina de espírito indômito” tem na mão o controle do seu destino (simbolizado por uma faca) e não vacila em aproximar-se de um belo e jovem caçador que ali encontra. A velha e passiva senhora, deitada à espera da neta tem o mesmo destino que a versão anterior lhe reservou. Ao chegar à casa da Avó, a corajosa jovem reconhece no lobo bem instalado em sua cama o gentil caçador por quem se encantara na floresta. Olhos, boca, orelhas e braços enormes não a assustam, e a noite termina em uma "selvagem cerimônia de casamento" enquanto lá fora, na noite gelada, uma companhia de lobos entoa “a Liebestod da floresta”. Sem dúvida um amor tão arrebatador e impossível quanto o de Tristan und Isolde, daí a referência à ária final da Opera de Wagner. Talvez um sentimento condenado, pelas vozes dos lobos observadores, ao mesmo destino trágico. No entanto esse destino o conto deixa em aberto, pois os lobos internos foram domesticados.

A tradução para o cinema, feita por Neil Jordan em 1984 tem o mesmo título (The Company of Wolves no original e A Companhia de Lobos na versão em português) e a participação da própria autora na escrita do roteiro, mas faz um mix de outros contos de sua autoria como o Alice-Lobo, e por isso tem outro final. Usando dos recursos próprios dessa arte, como alternância entre imagens com efeitos enevoados e nítidas, cores dos figurinos (o vestido branco e capa vermelha tecida pela avó), mudanças no espaço e nos figurinos para demarcar o tempo da narrativa não linear, e a substituição do narrador coletivo ora pela voz de uma sábia avó ora pela própria câmara, conta como Rosaleen (a menina que agora tem nome) enfrenta seus medos e se transforma para mudar o seu destino. Em um tom que pode parecer apelativo, abusa dos efeitos próprios dos filmes de terror como imagens chocantes e trilha sonora que induz ao suspense, incorporando outros temas psicológicos e sociais.

Nas análises feministas, a obra pode ser vista como uma desconstrução dos mitos que durante séculos exerceram seu papel de controle social, educando meninas para a obediência aos padrões de comportamento que a sociedade exigia. No entanto, o que me vem à mente agora em associação simbólica aos lobos que habitam em nós seres humanos, independente do sexo que nossos corpos apresentam, é o entendimento de que a manutenção ou desconstrução das crenças sobre nós mesmos, lobos mais ferozes talvez  do que os que nos observam, passa pela compreensão de que co-habita nossa alma algo capaz de neutralizar os seus uivos dilacerantes. Uma força que nasce do amor, da coragem, e da autoconfiança com o incrível poder de transformar a imagem do espelho. Desvendá-la é o primeiro passo rumo à consciência que abre caminho para mudanças individuais por onde se fortalecem as coletivas.

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