quinta-feira, 14 de março de 2013

Habemus poesis


fazer poemas é fácil
como amordaçar um lobo.

 (Postulado in tá pronto, seu lobo? - Paulo Machado)
 
 
Recanto,  por Sergia  A.


Enquanto o mundo aguardava uma fumaça branca, eu estava aqui querendo falar de flores. Pois é, foi assim fugindo das intermináveis análises políticas da sucessão no Vaticano que me dei de presente 140 minutos para ver o filme Shi (2010) dirigido pelo coreano Lee Chang-Dong. Fui fisgada logo nas primeiras cenas pelo estranhamento de uma abertura com apenas o ruído diegético: água corrente em close, águas turvas, e em seguida um plano que se amplia acompanhando a grandiosidade de um rio, uma ponte e a normalidade da vida, para novamente se fechar sobre um corpo levado pela correnteza. Ao corpo se sobrepõe o letreiro do sugestivo título (Poesia, na tradução brasileira).

A narrativa segue com trilha musical composta de um completo silêncio. Como no cotidiano fora das telas, a música entra somente se um personagem ligar um aparelho de som ou cantar em cena. Providencial para quem quer dar forma ao inefável como meio de discutir a criação poética. A procura das palavras é o caminho trilhado pela personagem principal (Mija), seja para resgatá-las da escuridão que a ameaça (mal de Alzheimer) ou para dar voz ao gosto por flores e falar coisas esquisitas como ela define sua ingênua veia poética ou, ainda, para despertar um gesto humano que se opõe ao horror. Sim, o horror é ali duplamente representado: de um lado um grupo de adolescentes (do qual faz parte o neto da protagonista) acusado de estuprar uma colega de escola levando-a ao suicídio, e de outro a atitude dos pais desses adolescentes que diante do fato não demonstram indignação estando mais preocupados em proteger seus filhos.

 
Fonte: YouTube


A cada nova cena literatura e cinema intermidiam-se, imbricando-se pela beleza dos seus espaços mudos. Assim como as palavras fugidias de Mija, as imagens são simples e banais: um ônibus, uma igreja, um minúsculo apartamento, um conjunto habitacional, um idoso precisando de cuidados, e um ambiente sufocante com uma vidraça a separá-lo do ar fresco e das flores. É às flores que Mija recorre para se refugiar do horror e descobrir aos poucos que é preciso tocá-lo, ver de perto, para vencê-lo. Na alternância entre os dois mundos o filme encontra sua forma de expressar o que está além do verbo.

O belo coexiste com a banalidade, a dor, o esquecimento, o horror, parece dizer o filme envolto por silêncio. Experimentá-lo é abrir os olhos, silenciar as certezas e aprender a ver com todos os sentidos. É dessa experiência incansável que nasce sua forma, seja um filme, um poema ou a vida.

Na ficção o horror impulsiona a renúncia que dá lugar a uma nova forma: o poema se liberta. Na vida, festeja-se uma fumaça branca  que é fruto de uma renúncia. Que seja o lobo enfim amordaçado pela sensibilidade capaz de despertar gestos mais humanos e condizentes com os desafios do seu tempo, ousa desejar o meu gosto por flores, ainda que possa parecer pura ingenuidade.


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