segunda-feira, 11 de março de 2013

O filme publicitário e uma pulga


A culpa não morre nunca, Fonte YouTube


Dizem por aí que o ano brasileiro só começa depois do carnaval. Boa parte dessa lenda se deve às férias escolares que engolem o primeiro mês do ano e colocam familias inteiras na estrada, e o restante ao mito do nosso serviço público. O estranho é que dediquei muitos anos ao trabalho em um banco estatal, e todos eles começaram rigorosamente no dia dois de janeiro. Se quisesse pular ondas e invocar os deuses por um bom ano tinha que me arriscar enfrentando congestionamentos para voltar a tempo depois de um dia e meio de feriado. A não ser que o trinta e um de dezembro caísse em uma quinta ou sexta: a glória! Ainda assim não escapava do perigo que rondava as estradas, pois estávamos todos na mesma agonia.  

Por falar em estrada e em carnaval, esse sempre esteve fortemente associado às nossas deprimentes estatísticas de acidentes. Talvez por isso o governo brasileiro começa o ano comemorando a redução desses números atestada pelos dados sobre o carnaval 2013. E viva a Lei Seca! Gritam em coro a mídia e a sociedade brasileira. Não discordo, muito pelo contrário. Aliás, quem ousaria discordar? Quem não deseja punição severa para os comportamentos de risco ao volante? No entanto, uma pulguinha impertinente se alojou na minha orelha há algumas semanas quando vi a campanha (que não se restringiu ao filme) e em seguida a notícia do seu honroso alcance.
 
Uma picada me fez lembrar que não estão computados nesses números as estatísticas das estradas estaduais. Outra picada me diz que tais números, mesmo reduzidos, são assustadores quando comparados a estatísticas de outros países. E olha que muitos deles não receberam como legado da natureza um relevo bem camarada sem grandes cadeias de montanhas, e condições climáticas que garantem visibilidade em geral boa durante todo o ano.

Mais algumas picadas, desta vez não na orelha mas na clavícula e nas costelas, me forçam a dizer que já fiz parte desses números, exatamente no cruzamento de uma estrada estadual com uma federal, e posso garantir que ninguém nos dois veículos envolvidos estava alcoolizado ou com velocidade acima do permitido. Fomos vítimas de algo esquecido pelas campanhas: sinalização inadequada e a falta de planejamento e seriedade na construção das estradas brasileiras.

Talvez seja mais fácil comover a população com slogans que apelam para o comportamento do indivíduo e eximir-se coletivamente da “culpa que não morre nunca”. Se a culpa é do indivíduo não cabe ao coletivo perguntar, por exemplo, por que não há um programa de autoestradas no Brasil (construção de estradas duplicadas, com pistas exclusivas para veículos pesados e lentos, sem cruzamentos, sem acesso de animais, etc.). Também não caberia perguntar por que dispositivos de segurança dos automóveis nacionais (como o airbag, por exemplo) são acessórios caros e não itens obrigatórios. E que falta de sensibilidade seria perguntar por que uma economia tão promissora parece não ter um plano de investimento em infraestrutura sustentável, aí incluído transporte público tecnologicamente avançado e de qualidade. Enchemos os olhos quando fazemos uso desses serviços e estrutura lá fora e na volta mergulhamos no silêncio da nossa comodidade. 

Pela janela além mar, por M. Alves
 

Investir em educação e mudança de comportamento é essencial, sem dúvida. Aplaudimos. Acreditar que isso é suficiente, além de fechar os olhos para os demais fatores que são também alarmantes, é no mínimo considerar hipocritamente que humanos não estejam sujeitos a falhas. Às vezes bastante comuns como ser vencido pela ansiedade de passar horas atrás de um caminhão e decidir arriscar uma ultrapassagem, ou não ser ágil o bastante para desviar de um animal que surge de repente na pista. Às falhas, os rigores da lei. Embora com isso não se aplaquem as suas consequências, das quais também fazem parte a corrosão da alma pelo sentimento de culpa.

Bom, apesar do incômodo essa pulga talvez não me fizesse emergir da platéia silenciosa e lacrimejante, se a vontade política direcionasse as nossas valiosas contribuições (impostos, tarifas para uso de automóveis, tarifas embutidas no preço dos combustíveis, etc.) para fazer, no mínimo, o que os outros já fizeram há muito tempo. Xô pulguinha! Agora te peguei.


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