domingo, 1 de setembro de 2013

Amarelo utópico


desbarbarizar tornou-se a questão
mais urgente da educação hoje em dia. (...)
a tentativa de superar a barbárie é decisiva
para a sobrevivência da humanidade.

 (Theodor Adorno, 1968 - Tradução: Wolfgang Leo Maar)


Explosão de vida em tempo árido, por Eugênia Medeiros


Aprendi na escola há muito tempo que o povo brasileiro era o produto da miscigenação de três raças. Assim mesmo “raças”. Ainda não tínhamos chegado ao esclarecimento de que a raça humana é única. Como exemplo genuíno a cor da minha pele nominava-se parda (nem vermelha, nem negra, nem branca). Aprendi na mesma escola que o povo brasileiro tinha índole pacífica, tolerante e não preconceituosa. Preconceito era o que existia nas sociedades em que se manifestava a segregação étnica ou racial. Aqui vivíamos todos em paz. Quem tinha empregados domésticos (de pele escura em sua maioria) os tratava bem (como se fossem da família). Agradecidos eles não cobravam um salário digno e a jornada de trabalho não era definida. Não questionávamos (era proibido questionar) os significados de pacifismo, tolerância e muito menos a ausência de peles negras ao lado das pardas e brancas nos bancos da mesma escola. Ouvia-se com frequência uma sentença: quem não pode não estuda.

Tempos depois aprendi que a verdade tem múltiplas faces. Descobri na banalidade das notícias diárias que nossa índole pacífica não nos impede de ter um dos índices de criminalidade mais altos do mundo, de depredarmos patrimônio público ou privado em nome do ato democrático de protestar, ou de agredirmos até a morte alguém que nos xinga no trânsito ou que torce por um time de futebol que não é o nosso. Descobri no horário nobre da televisão que a nossa tolerância tende a ser sinônimo de passividade ao aceitarmos como normal a violência institucional (das corporações que deveriam garantir a segurança pública, por exemplo) ou a corrupção generalizada que retira todas as possibilidades de acesso a serviços públicos de qualidade. Descobri ainda que o nosso não preconceito não resiste ao incômodo de ver pessoas de pele escura (brasileiros e estrangeiros) ou mestiços da emergente “classe C” ocupando os lugares que historicamente pertenciam aos brancos ou pardos de boa aparência, seja em um simples assento de transporte aéreo seja em um posto médico em longínquos rincões. 

Cansada do meu país, divago pelo noticiário internacional. Descubro que uma nova guerra se prepara sob antigos argumentos. Não compreendo a diferença entre o ato de matar seres humanos com mísseis teleguiados, com explosões ou com armas químicas. Matar, no meu dicionário, significa sempre se achar no direito de tirar a vida do outro. Motivos e meios não interessam. Tenho medo de aceitar com naturalidade que o grau de civilização que alcançamos não nos distancia da barbárie. A agressividade primitiva que nos habita, mesmo depois de Auschwitz, Hiroshima e Nagasaki, Vietnam, Bósnia, 11 de setembro, Iraque e Afeganistão, segue encontrando formas cotidianas de manifestação. Justificam-nas os mais diversos níveis de intolerância: étnica, religiosa, à orientação sexual, política, econômica, ou simplesmente porque me sinto ameaçado por tudo que não cabe no mundo que desenhei para mim.




Especial da Rede Globo em 1993
Fonte: YouTube

Quase meio século depois da tese que guia hoje meu pensamento parece não haver, nem sequer como uma possibilidade, o pensar na educação para a não violência. A educação que forma pessoas críticas, capazes de rejeitar a brutalidade sem se tornarem passivas diante de seus afetos. Um sonho demasiado utópico, talvez. Agarro-me aos pequenos rumores que distantes da grande mídia me chegam nas asas do vento em chuva amarela. Acredito na palavra e na vida que rebenta em solo árido. Um velho ranço no meu peito teima em não se desencantar.

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