quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Das razões para agradecer


And I can never be thankful
enough to you and to Fate for (...)

(Peter Pears, em carta a Benjamin Britten em 21/Nov/1974) 







Caminhos de água, por Sergia A.
 
Por umas dessas conspirações que o universo adora me proporcionar abro, neste vinte e um de novembro, a pagina 95 do programa do Opera North Festival of Britten (do qual tive a graça de ver a ópera Peter Grimes no último dia nove) e leio cartas trocadas entre Britten e Pears (o compositor e o co-autor da sinopse do libreto, antes da formatação por Montagu Slater). As cartas são escritas após trinta e cinco anos de relacionamento. O tom é de reconhecimento das razões para o agradecimento. Confiro a data. Penso: é um sinal.

Poderia não fazer isso publicamente. Mas obedeço ao desejo, tolo talvez, de assim proceder desde que agradecer tornou-se uma obsessão. Durante a minha infância este foi um dia de luto. Anos depois, houve um dia de outro mês em que cada mililitro de ar que entrava em meus pulmões me causava simultaneamente dores e uma extrema felicidade, porque a dor era um evidente sinal de que estava viva. Hoje, como naquele dia e em todos os que se seguiram, me sobram razões para sorrir, agradecer e louvar a vida. Faço uma lista e publico, afinal estamos sempre, de algum modo, devendo-as a alguém:
 
  • Por cruzar um oceano, aterrissar em solo estranho, e do outro lado dos rostos endurecidos dos agentes de imigração, haver um sorriso à minha espera;
  • Por percorrer auto-estradas congestionadas para encontrar muito mais que uma mesa posta, uma taça de vinho e um alimento preparado com carinho;
  • Porque depois da escada há água morna e um quarto aconchegante, preparado para restabelecer meu corpo moído e necessitando reparos;
  • Pelo frio, pela chuva que me saúdam e me inspiram ao me retirar abruptamente da normalidade do sol que se repete sem alteração a cada três meses;
  • Pelo mergulho profundo em uma estação e suas cores oferecidas gratuitamente pela natureza em parques, calçadas, praças e estradas;
 
Outono, por Sergia A.

  • Pela amizade que abre portas pra receber o amigo do amigo. E, como se isso fora pouco, em um gesto de delicadeza consegue harmonizar um jantar tipicamente inglês com fundo musical brasileiro.
  • Pela pressa enlouquecida da cidade cosmopolita cujos contrastes me agridem e me fascinam;
  • Por me perder e me encontrar na minha completa falta de senso de orientação (benditos sejam os mapas e suas versões eletrônicas!);
  • Pelo vento gelado do atlântico norte que recorta encostas e avança por ladeiras estreitas revelando castelos medievais prontos a fertilizar a minha imaginação;
  • Pelo acesso ao passado mantido vivo em templos celtas ou em museus, lado a lado com as exposições de arte contemporânea que nos desafiam a adentrar o mar escuro do desconhecido;
  • Pelas aulas de arquitetura ao ar livre entre pontes, aquedutos, castelos e imponentes catedrais que nos instigam a entender o valor da fé nos destinos da humanidade;
 
arcos da fé, por Sergia A.

  • Por diminuir a surdez dos meus ouvidos ao preenchê-los com notas de uma orquestra sinfônica e um pianista que brilha apesar da escuridão que lhe foi imposta;
  • Pelo contato com uma opera contemporânea cuja musicalidade bate no meu peito como ondas do mar que nos une e nos separa;
  • Pela magia do teatro com palco central e seus atores eloquentes traduzindo textos clássicos para contemplar as mazelas do nosso tempo e nos fazendo pensar o quanto a humanidade se repete e impõe sua condição seja qual for o espaço que ocupe;
  • Pela vertigem que me causam os quatro andares de uma livraria e suas intermináveis estantes oferecendo filósofos, poetas e escritores em suas línguas originais para a minha pequenez que impede de alcançá-los. (Bendita seja a arte da tradução!);
  • Por ter, no curto tempo que me foi dado, a chance de um aprendizado sem preço: gastronomia, enologia, história, arquitetura, tradução, arte e cultura;
  • Por cruzar um oceano, aterrissar no solo quente da minha terra, e ser saudado pela velha dor de cabeça causada pela claridade e pelo ar seco que meus olhos e nariz teimam em não filtrar;
  • Por ter na ausência alguém cuidando do meu chão sem se cansar de oferecer suporte para minhas asas viciadas no seu ofício;
  • Por reencontrar sob meu teto a meiguice de doce e florido sorrisos (em breve, iluminados por uma estrela), ampliando a desconfiança que habita minha mente e me diz baixinho que, como as águas,  nunca voltamos pro mesmo ponto de onde partimos.

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