domingo, 16 de fevereiro de 2014

De passagem


Esse mundo não é meu
Esse mundo não é seu.
 
(Arnaldo Antunes/Branco Mello in Eu não sou da sua rua)

 


Quintal, por Sergia A.


A chuva cai torrencialmente lá fora. Ligo a TV e desligo em um segundo. Incomoda-me a mesmice exacerbante. Filósofos, antropólogos, sociólogos, juristas, jornalistas descobrindo palavras que acobertem suas visões. A polícia tem pressa em fechar o inquérito e vir a público justificar sua existência. Afinal o quarto poder foi duramente atingido e fala-se em cerceamento à liberdade de expressão. E eu aqui, que nada sou, fico ruminando. De perplexos passamos a inteiramente confusos. E o tempo continua prenhe de interrogações.
 
A esperança dá sinais de cansaço. Mortes, ônibus incendiados, patrimônio público e privado (bancos, principalmente) depredado a olhos vistos. E o que vemos choca. O que não vemos cochila nas estatísticas como resíduo que a desigualdade social nos impõe. Por que vamos às ruas com tamanha brutalidade? Que motivos nos levam ao enfrentamento se vivemos uma democracia?

Mídia e polícia desafiam meu gosto por ficção retirando das ruas três personagens distintas para compor sua narrativa: sininho, fabio e caio. Uma se diz ativista (segundo meu dicionário: serve a uma doutrina ou militância política). O que é claramente percebido na articulação do seu discurso. A outra assim não se assume. Tem cara de bom moço. Esquiva-se, apesar das pichações e de se apresentar com advogado (bem pago, naturalmente). A terceira recebe a culpa maior (acendeu o rojão). Assustada é sua expressão. Sua vida se escancara sem pudor. Auxiliar de serviços gerais trabalhava duramente, supõe-se. Uma família na periferia dependendo do seu salário. Enfrentava diariamente trens lotados e atrasados. Uns trocados a mais para promover quebra-quebra em manifestações e ainda ganhar a redução do preço da passagem, por que não? Assumiu, na euforia, o risco de soltar um rojão. Não reparou que havia uma vida no meio do caminho. Quando se deu conta, achou que longe dos centros urbanos o colo do avô o salvaria. Esqueceu que o mundo do seu tempo tem teto de vidro (que o digam os parlamentares que finalmente cassaram o mandato de Natan Donadon, ou Snowden que por aqui procura abrigo). Câmeras atentas registram com detalhes a ação. Na montagem se construiu um precioso enredo com final em aberto. 
 
Obra aberta gera inquietação. Às vezes, desencanto com o que surge das entrelinhas. Onde foi mesmo que nos perdemos? Por que é tão difícil compreender que entre mim e meus atos há o outro? Talvez seja pedir demais para caios que sacolejam anonimamente em trens ou ônibus lotados, não têm plano de saúde, moram mal e encapuzados vão à forra nas manifestações organizadas por sininhos e fabios. Talvez seja exigir pouco de engravatados que nas grandes corporações, órgãos públicos ou cargos eletivos, deslocando-se em carros possantes ou aviões, alimentam uma (demo?)cracia voltada pra si mesma. Um sistema e suas contradições, talvez rendesse um título melhor que vandalismo. E de quebra ainda ampliaria o tema de local para universal.
 
Obra aberta traz ainda outras possibilidades. Talvez, antes que subam os letreiros, haja tempo de se pensar um novo final. Aberto à participação do espectador, como deve ser. Há que se considerar que ocupamos o mesmo espaço, ainda que não falemos a mesma língua e nossas vidas se diferenciem. Há que se perceber que o mundo já não cabe no meu ou no seu quintal. Que estamos todos de passagem, e o seu movimento inevitavelmente afetará o meu. 

 
Fonte: YouTube

 

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