terça-feira, 1 de abril de 2014

Antony and Cleopatra e o Haiti


CLEOPATRA:
Nay, ‘tis most certain, Iras, Saucy lictors
Will catch at us like strumpets, and scald rhymers
Ballad us out o’tune; the quick comedians
Extemporally will stage us and presente
Our Alexandrian revels; Antony
Shall be brought drunken forth, and I shall see
Some squeaking Cleopatra boy my greatness
I’th’ posture of a whore.
 [1]

 (Shakespeare in Antony and Cleopatra – Act V, Scene 2)
 
Dissonantes?  por Sergia A.
 
Acordamos cedo e partimos. Coração expandindo o peito dividido entre a felicidade daqueles dias e a ansiedade de voltar pra casa. Um turbilhão de sentimentos em cada curva da estrada que nos conduz a Stratford-upon-Avon. Último pouso daquela temporada. Chuva e um sol tímido se alternando no vidro da janela. Os olhos, mergulhados na atmosfera dourada do outono, não dão conta do tempo. Um teatro à nossa espera. Um sinal. Apagam-se as luzes laterais. Ilumina-se o palco. A percussão do britânico de origem nigeriana Akintayo Akinbode acende a curiosidade. Cantos e passos afro-caribenhos despertando espantos.
Sim, por mais espantoso que possa parecer, o Haiti é aqui. No cenário. No figurino. Na música que intercala cenas. Na pele propositadamente não embranquecida de Cleópatra. Um salto de espaço e tempo. Trocam-se as areias do Egito antigo pelas praias de Saint-Domingue no século XVIII, às vésperas da rebelião. Uma ousada moldura para o texto original que se adapta mas não se altera. Romanos e egípcios divididos entre o amor e a guerra, a conquista e a humilhação imposta ao conquistado. A morte como redenção. Uma moldura para o pensamento provocante do diretor norte-americano Tarell Alvin McCraney que dividiu críticos e amantes da obra de Shakespeare.

Textos clássicos, por definição, cultivam imunidade ao tempo e não se prendem ao local. Estão sempre dispostos a nos mostrar caminhos para a atualização de seus temas. Mesmo os que se estruturam em um viés histórico, pois a arte costuma olhar a História pelas margens, pelo que ficou sem ser contado. Como os sentimentos da personagem Cleópatra antes da decisão pela morte, na criação de Shakespeare. Talvez por isso o Haiti parece estar sempre precisando do caminho da arte para emergir das sombras que penalizaram a ousadia do seu povo. Que o digam o realismo mágico de O reino deste mundo (1949), do cubano Alejo Carpentier. Ou, a voz dada a Zarité em A Ilha sob o mar (2009) da chilena Isabel Allende. E por que não uma radical locação para uma obra imortal, que abre um leque para escolhas diversas sobre qual história contar?
Ilumina-se a plateia. Aplausos. Na porta do teatro já não chove. Saímos emudecidos. Uma voz melodiosa sobre tambores atiçando o pensamento. Uma provocação para o vício de nossa resistência. A montagem imaginada por Tarell, como resposta ao desafio proposto pela Royal Shakespeare Company, consegue realçar a questão racial na trágica história de amor, sem ser panfletária. Arte, nada mais que espanto. 
 
 
[1]CLEÓPATRA:
Ora, mais que certo, Iras, oficiais     
Ousados vão pegar-nos por rameiras,
E poetas comuns hão de compor
Baladas dissonantes sobre nós.
Comediantes sagazes, de improviso
Vão nos jogar em cena a apresentar
Nossas festas de Alexandria; Antônio,
Um bêbado; eu verei algum
Guri-Cleópatra, aos guinchos, meninando
A minha grandeza com ar de puta.


(Tradução: José Roberto O’Shea)

 

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