terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Resíduos do dia de reis


Prostrando-se, adoraram-no;
e, abrindo os cofres, ofereceram-lhe
presentes: ouro, incenso e mirra.

(Mateus 2,1-12)


jardim suspenso, por Sergia A.


Ali, no meio do shopping, ela assiste a correria. Catatônica. Sacolas e sapatos atropelando seus pés estendidos, propositalmente, à frente do banco. Como se alguém pudesse reparar no seu gesto. Cansada, volta para casa. Nada nas mãos. Todo o peso sobre os ombros. Escuto sua voz afogada pela correnteza do tempo. Tudo fica para a última hora. Tudo segue uma lista sem nexo. O impulso alimentado pela pressa. Pior que a pressa, a obrigação de presentear em data fixada. Pior que a obrigação, a necessidade de garantir a troca. 

O turbilhão movendo o mundo. Mergulho no gesto alheio. Sua angústia aquece meu sentimento de culpa. Escolho dizer não. E justamente quando digo não, recebo preciosos mimos. Estão agora diante de mim exigindo a correção dos meus desvios. 
- Olha, achei a tua cara! Alguém me diz. Era.
- Abre, acho que você vai amar! Ainda ouço a sua voz. Amei.
- Sei que você não tem jeito pra essas coisas, assim envio já decorada, para combinar com seu jardim suspenso, é só ligar a tomada! Estava escrito em um bilhete afetuoso. Ficou harmonioso.
- Estás distante, ainda assim abraço-te em minhas orações. Dizia a mensagem eletrônica. Juro que senti seus braços ao meu redor.
Pequenas coisas. Prova palpável de que fui alvo do pensamento do outro. Doaram-me tempo. E isso não é pouco. Repenso.

Oferenda. Aquilo que se oferta. Fruto da generosidade. Da virtude. Do estado do meio, diria Aristóteles. Do sentir prazer em se doar. Da compreensão de que nada, de fato, me pertence. Dar a mim mesma a liberdade, diria Descartes. Ser livre para querer. Ser responsável por querer. Seguir a onda ou parar diante dela, sem culpa, porque me ofereço a chance de olhar para mim. Fazer uso da minha vontade me devolve a capacidade de ver o outro além da obrigação ou do calendário. De ver transbordar a dádiva, nas mãos que doam ou recebem. De averiguar a origem, o tamanho e o alcance da minha generosidade, se é que ela existe dentro de mim.

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