quinta-feira, 16 de julho de 2015

Do que a memória guarda: Hannover


Onde estamos quando pensamos?

Hannah Arendt, in A vida do Espírito - O pensar
(trad. Antonio Abranches)



Großer verletzter Kopf, por Rainer Kriester (vista por trás) in Trammplatz,
por Sergia A. (2012)



De vez em quando sou sequestrada por memórias de viagem. Lá do fundo elas emergem nítidas, vagas, por vezes precisando de uma pequena dose de invenção. Um sinal de alerta piscando, indo e vindo, sobrevoando como vagalume quando luzes mais potentes se vão. Estranho mesmo é o luzir e apagar, sem que eu tenha o controle das chaves. Foi assim que Hannover me arrancou da cama para me abandonar diante desta página em branco. Pago o resgate.

Não seguimos a linha vermelha de suas calçadas. Foi uma noite apenas, uma pausa entre Amsterdam e Berlin, rumo ao Báltico. Céu limpo, uma lua enorme contemplando do alto as janelas abertas e o nosso vagar pela noite de verão. Ou, quem sabe, rindo do desespero dos nossos estômagos diante das cozinhas rigorosamente fechadas depois das vinte e duas horas. Retidão e austeridade era tudo o que já prevíamos encontrar. Mas, nunca se sabe o que nos espreita nas sombras da noite. 

Uma emergência. Um funcionário de hotel e um taxista atenciosos. Um hospital na madrugada. Limpo, simples e uma atendente sisuda, bem maior que eu, daquelas que caberia sem folga no estereótipo. Um tempo de espera. Uma médica se veste de boa vontade para nos compreender em uma língua que não era a dela e nem a nossa. Exames feitos. Passado o susto, ela se dispôs a nos incentivar a prosseguir em uma conversa de tom amigável. Do seu rosto me vem agora, sem nenhum borrão, o sorriso farto e o olho brilhante me impondo um desvio no caminho perigoso da história única. O desvio que ressalta o valor da empatia, do acolhimento, do fato sempre surpreendente de sermos diferentes e tão iguais. 

Bogenschütze , Ernst Moritz Geyger in Trammplatz
por Sergia A. (2012)


Com o sol encoberto e as malas deslizando pela Trammplatz, perco (ou, ganho) alguns segundos na contemplação de duas esculturas: Arqueiro (Bogenschütze, de Ernst Moritz Geyzer) e Grande cabeça ferida (Großer verletzter Kopf, de Rainer Kriester). Escondidas na penumbra da chegada se revelam na despedida, sob a luz fraca da manhã. Separa-as o tempo e a concepção de arte. No entanto, o olhar do arqueiro em direção ao alvo de sua flecha, ou, o cruzar dos dedos que apoiam a cabeça ferida, cada um a seu modo, cumprem o papel de levar ao mundo o que um dia esteve aprisionado como pensamento. E, em um instante de outro tempo induzem um viajante a pensar.

Dou-me conta, diante do que acabo de escrever, que isso me vem de algo dito por Hannah Arendt – nascida naquele lugar. Mistério resolvido: a expressão ‘banalidade do mal’ tem se repetido por aqui nesses tempos difíceis. Os que não querem mudança da estrutura política fomentadora de tantos males (praticados como se fizessem parte de uma ação normal), pousam de bons e apontam os monstros para satisfação dos que se regozijam no ódio ou na comodidade do não pensar. Eis a chave!


2 comentários:

  1. Sergia, mandei um e-mail para você sobre a coluna Você é o autor da Revista FUNCEF. Se puder, entre em contato comigo pelo daniellebehr@funcef.com.br. Preciso fechar a coluna da próxima edição da revista com você. Grata, Danielle

    ResponderExcluir

Obrigada pela visita! Volte sempre.