segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Cartas da Itália: Veneza





Uma vez escrevi num prólogo Veneza de cristal
e de crepúsculo. Para mim, crepúsculo e Veneza 
são duas palavras quase sinônimas, mas nosso 
crepúsculo perdeu a luz e teme a noite e o de 
Veneza é um crepúsculo delicado e eterno,
sem antes nem depois.


(Jorge Luis Borges in atlas, p.31)



o grande canal, por Sergia A.



Veneza, 03/10/2015

Querida L.


Desta vez decidimos por uma hospedagem na vizinha Padova (Pádua) para fugir um pouco do burburinho turístico. Não que eu tenha alguma resistência a isso. Ao contrário, tenho plena consciência de que sou apenas mais uma a engrossar suas fileiras. E gosto de me sentir assim... apenas mais uma pessoa que deseja conhecer, avistar, ouvir o que tantos tem a me dizer. Estou convencida de que por mais que digam, algo se renova na minha experiência que será sempre única. 

Assim é que descer os degraus da estação Santa Lucia é um espanto cuja reação vem acompanhada de lágrimas. Sim, de lágrimas, como se o lugar exigisse do meu corpo uma adaptação natural ao seu meio. Palavras são incompetentes para descrever aquela visão do grande canal, o rumor das línguas que atordoam meus ouvidos, ou do ritmo engraçado do italiano gritado pelas portas e janelas, dos táxi/barcos velozes, do vaporetto em que se balançam e se misturam trabalhadores e visitantes, das gôndolas em preto e dourado (sim, elas existem e gondoleiros cantam canções apaixonadas). Não importa quantas vezes a cena tenha sido vista em filmes, documentários, fotografias de amigos. A cidade não se repete. É uma para cada dia e para cada um que por aqui aporta. Quando cessam as lágrimas, sou tomada pela sensação de ser personagem de um cenário encantado.


a gôndola, por Sergia A.


Respiro e absorvo sua luz apesar das nuvens. Se sou personagem, há um enredo esperando por minhas ações. Um enredo que deve ser flexível como a liquidez dos caminhos que compõem o cenário. Segui-lo, livremente, é encontrar pontes arqueadas sobre estreitos canais em que escorrem surpresas impagáveis. Ou, becos que contornam o fluxo das ruas móveis até a conquista do grande palco cuja elegância é motivo de comentários seculares. No entanto, não é a beleza da fusão das águas, da geologia e construções engenhosas, dos cristais e do crepúsculo que magnetizam o meu pensamento e me levam ao teclado. O que me instiga são as fusões que a história e a arquitetura não escondem.


a luz, por Sergia A.


Que valores nasceram do abrir-se ao mar Adriático, e por consequência ao Egeu e ao Mediterrâneo? Ou, da proximidade com países como a Grécia? Ou, do receber pelas veias que percorrem seu corpo, além das águas, os ventos do oriente e as correntes migratórias? O que está na origem do pioneirismo do seu crescimento comercial e de tamanha riqueza cultural? Que lições sobreviveram do fazer da sua maior dificuldade (o isolamento da terra firme, pois é formada por 117 ilhas) a sua fortaleza? Ou, do tornar-se ponto de encontro para os dois lados da Terra dividida, ainda que, muitas vezes, sob pressões, guerras e invasões?


Elena, por Sergia A.


Perdida em seus labirintos (literalmente, bem me conheces...), levanto a cabeça procurando sinais e encontro uma placa que prende minha atenção. Sim, completamente por acaso, eu estava no local de nascimento de Elena Lucrezia Cornaro Piscopia (1646), a primeira mulher a conquistar um doutoramento. Quanto o nascer naquele local, no pós-Renascimento, influenciou o seu gosto e sua dedicação à matemática, filosofia, teologia, e às línguas? (devo te dizer que Elena era tradutora de latim, grego, espanhol, francês, árabe e hebreu). Quanto o viver naquele local influenciou a atitude do pai que advogou em defesa da sua entrada na Universidade de Pádua (1672), quando este era um campo completamente dominado por homens?

Perdida em meus labirintos, sou despertada por um sotaque indiano me oferecendo um cardápio. Mais adiante alguém cujo sotaque me é desconhecido (possivelmente da Somália ou Etiópia) me oferece guarda-chuva e souveniers vendidos nas calçadas. Olho nos seus olhos, agradeço, digo não e prossigo sem respostas. Aliás, não procuro respostas imediatas, prefiro sempre as questões. Deixo-as contigo, e fico por aqui admirando o belo do mundo, cuja riqueza se monta como colcha de retalhos. Do mundo que precisa, com urgência, revisitar sua história, para entender o presente e projetar um futuro de paz que alcance a sua totalidade.

Um abraço cheio de saudades e desejo que chegue até você um pouco desta luz delicada e eterna.
tua
S.


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