sexta-feira, 27 de maio de 2016

sobre botões e coletividade


Castelos
nomeiam as pedras
que fortificam os sonhos
ou o enredo de tragédias.

[Sergia A. - 07/06/15]


"Ainda vivemos na idade média.
Só invertendo a lógica do estupro sairemos dela."

[Marcia Tiburi in Lógica do estupro, Revista Cult]



botões, por Sergia A.



Venho de uma casa de sete mulheres. Nenhuma relação com o romance que virou minissérie, só não consigo me livrar do número. Cheguei como a sétima, para formar um grupo de oito. Não. Éramos mais. A presença da avó era constante. Não. Éramos mais. Na ampla cozinha de minha mãe viúva se misturavam as histórias da lavandeira, das tias, das comadres, das vizinhas. Pronto, éramos uma coletividade. Presentearam-me, em ocasiões distintas, com uma imagem de Santa Joana D'Arc e um livrinho sobre Santa Maria Goretti. Virgens heróicas. Derrotadas pelo poder masculino que naquela casa se projetava como sombra. Uma condenada à fogueira por não ceder em suas convicções. Outra assassinada por não atender aos desejos sexuais do seu senhorio. Ofertaram-me a ambiguidade: fortaleza e fragilidade. Disseram-me: essa é a nave! cabe-lhe apertar os botões!

Aprendiz, quis entender a lógica que na fortaleza, claramente percebida a minha volta, eterniza a fragilidade. A lógica da violência dos livros e dos jornais que narravam, com frequência, atos em defesa da honra. Ou, daquela sombra que em minoria invadia a cozinha e determinava suavemente o nosso jeito de navegar. É significativo que tenha sido por mãos masculinas que publiquei o primeiro texto. Um irmão e um amigo, nas horas vagas, editavam um pequeno jornal em uma cidade do interior. Gozavam da liberdade de arriscar. Um dia precisaram de um texto para fechar uma página, qualquer coisa servia. Apertei o botão e direcionei as linhas ao narcisismo dos homens como fruto da educação, à postura assumida pelos que se sentiam o centro do mundo. O texto se perdeu com o tempo. Mas, pelo que lembro refletia, talvez de forma intuitiva e ingênua, minhas andanças pelo espaço, tentando competir de igual para igual no trabalho e na vida pessoal. Eram agora seres vivos, não sombras. A própria nave me ensinava a manusear os botões.

Décadas depois, encontro novas histórias repetindo o enredo secular. O incômodo persiste em cada leitura. Ao ver uma mulher, no exercício de um cargo público, ser covardemente xingada pelo anonimato coletivo, senti de volta o desconforto que a imagem de Joana D'Arc me provocava. A angústia de Maria Goretti também não tardaria a reencontrar o seu lugar. Há exatamente um ano ouvi a mais terrível delas pelas bandas de cá. Brutalmente se interrompia castelos de sonhos e a culpa, já não se justificava na psicopatia individual, se diluia. Era coletiva. O desconforto deu lugar a uma dor aguda no ventre. Silenciei por uns dias até parir o sintético poema que hoje me guia. Há uma semana a noticia se repetiu, um pouco mais ao sul. Uma adolescente, a culpa coletiva. Há dois dias, o retorno enfeia a cidade mais linda. Uma adolescente, a culpa coletiva diluida pelo número trinta. A dor intumesce o ventre. Coletiva é também a agressão sofrida. A dificuldade em encontrar os botões faz a nave entrar em rodopio.

O rodopio, também como parte de uma simbólica sentença à fogueira, nos joga em um túnel com destino ao passado. Por um instante, achei que desembarcaríamos em meados do século XIX. No entanto, parece que estamos a toda velocidade rumo à idade média. Ou, será que nunca a deixamos? Que vivemos um devaneio coletivo, um pé lá outro cá? Em busca de algo palpável encontro porta-retratos. Elas me sorriem. As primeiras e as que vieram depois de mim. Sim, deve ser predestinação. Formei uma família de mulheres. Somos agora seis em três gerações. Três são pequeninos botões, não os de apertar, mas os de florescer, desabrochar. Ou, os de sílica que indicam a presença do diamante nas lavras. (oh, língua portuguesa! que seria de mim sem ti?). Reúno-as na varanda, onde chegam sussurros e risadas de uma ampla cozinha. As palavras desenham um caminho para o futuro. Quero ofertar-lhes a esperança.



4 comentários:

  1. Lindo post. Também venho de família de muitas mulheres: tias, primas, muitas. Que dominam a família. Minha mãe tem sete irmãos, dos quais só dois homens. E quietos....

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  2. serginha, que lindo entrelaçar de memórias, histórias e realidades tão duras de se sobreviver. somos fortes e viveremos pra ver os botões, pelo menos, se abrir.
    beijo e vida longa a sua literatura. tô louca pra ler seu livro.

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    1. obrigada pela leitura e pelo incentivo, Fernanda! Um abraço.

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