domingo, 25 de setembro de 2016

Tempo e movimento



O tempo não é uma ilusão. 
Ele existe e está realmente avançando.

[Marina Cortês, física da universidade de Edinburgo, 
em entrevista para BBC]



máquina do tempo, por Sergia A.



Precisei recorrer a alguns conceitos da física para me certificar da direção da seta do tempo diante do movimento retrógrado que inverteu nossos passos na trajetória. A epígrafe resume o pensamento dos que acreditam que o universo é feito de uma série de eventos únicos, e por não se repetirem só podem influenciar os eventos seguintes dando ao tempo uma direção: o futuro. Há controvérsia. Há os que negam a ideia da "flecha do tempo". Mas essa não é a minha questão. Falta-me conhecimento para discuti-la. Quero apenas uma tábua de salvação. Algo que me tire da angústia de acordar todos os dias com uma nova sensação de dejà vu.

Mergulho nesta onda incômoda para trazer à tona o real.

Vivi a adolescência durante a última década da ditadura militar brasileira. O ano de 1975 arrastou-me para a capital para fazer o ensino médio (ou segundo grau, para ser fiel à nomenclatura). Não tinha consciência do que acontecia ao meu redor, além dos homens de verde preenchendo esquinas. Uma palavra ou outra que escapava do burburinho dos adultos, sussurrado entre paredes, despertava pequenas faíscas que só mais tarde acenderiam. Uma Lei de 1971 havia imposto o ensino profissionalizante obrigatório, depois de uma Constituição que eliminava a exigência de um gasto mínimo em educação. Algo me diz que, neste ponto, qualquer semelhança com o que ocorre no tempo presente já não parece ser apenas uma sensação de dejà vu. Ganha status de modus operandi.

Passado o primeiro ano, que era básico para todos os cursos, cabia a mim escolher um curso profissionalizante. Boa aluna, fascinada por livros, professores e familiares incentivavam meus sonhos de chegar a uma universidade. Mas, a escola era pública e o ensino profissionalizante o único caminho. Disseram-me: faça opção por um curso técnico de enfermagem. Depois era só fazer vestibular para medicina. Na mente provinciana garantia de futuro era estudar medicina (direito estava em baixa, licenciaturas nem pensar!). Segui o conselho. Além de ser deslocada para uma escola em outra zona da cidade (a única que oferecia o curso escolhido), esqueceram de me alertar para o fato de que com as disciplinas reduzidas eu não alcançaria o conteúdo necessário para o concorrido vestibular. De nada adiantaria os conhecimentos técnicos na área de saúde. 

Para fechar o segundo ano era preciso ficar uma semana acompanhando aulas práticas em um hospital. Cheguei rapidinho à conclusão de que aquela não seria a minha escolha profissional. Nada daquele ambiente me atraía. Vi o ano se encerrar carregado de tristeza. Uma nuvem cinza embaçava o futuro. O brilho do boletim não aliviava o sentimento de desperdício. Ainda que a matemática, a física, a química, a biologia constassem da grade curricular, tinham cargas horárias reduzidas para dar vez às disciplinas profissionalizantes. Estavam, portanto, bem distantes da programação das escolas privadas. Alguém tinha decidido, por mim, que meu caminho não seria a universidade. O máximo que podia esperar seria tornar-me "mão de obra qualificada" para o progresso do país. No meu ouvido a velha ordem explodia cheia de certeza: quem não pode não estuda.

Há quem acredite em anjos. Algumas pousaram do meu lado em carne, osso e gênero (eram mulheres). Uma delas, a quem a velha ordem negara o direito de escolha, decidiu apertar o cinto, aumentar horas de trabalho, sacrificar seus próprios sonhos para me oferecer um "terceiro ano com cursinho". As escolas privadas escapavam da obrigatoriedade do "profissionalizante" criando disciplinas fantasmas que nunca seriam questionadas. Precisei me impor uma sobrecarga de estudos nas madrugadas, para recuperar o tempo perdido e voltar a sonhar com um curso universitário. O ano seguinte começou feliz. meu nome constava entre os aprovados para engenharia civil na universidade federal. Dos quarenta apenas um pequeno percentual era oriundo de escola pública (com um "cursinho" particular no último ano). Os demais eram provenientes de dois grandes colégios privados, tradicionais, em que estudavam os filhos das classes média e alta da cidade.

Volto à superfície para respirar. Em mergulho mais raso e rápido encontro algumas décadas de esperança, com tropeços e necessidade de acerto de rumos. Muito ainda por fazer. Adequação do ensino médio aos novos tempos. Fortalecimento das escolas/institutos técnicos para atender os que desejam entrar rapidamente no mercado de trabalho. Melhoria da qualidade do ensino público para oferecer igualdade de oportunidades. Valorização da carreira de professor...

Ao emergir de vez abro os olhos e vejo um tempo enlouquecido. Como se os ponteiros  tivessem dado uma guinada e sua seta tomasse o sentido oposto. Ao contrário dos países que alcançaram o desenvolvimento com grande investimento em educação, o que está posto é o aumento da segregação de classes e da desigualdade social. O que está posto é a negação de futuro a uma parcela da sociedade. Estamos na contramão. Ou, talvez, a máquina do tempo enlouquecida esteja resgatando do passado as sementes da erva daninha que imaginávamos secas e envelhecidas.

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para Bel, normalista/depois pedagoga, estudiosa e devotada à educação, a quem devo uma possibilidade de escolha...


3 comentários:

  1. esses são os sentimentos e as lembranças que também tenho, Sérgia. o meu caso, talvez, tenha sido pior. nada do que ofereciam me estimulava e nem tinha sentido. definitivamente, não sabia para que serviria alguns meses de profissionalizante em marcenaria, já que meus sonhos estavam ligados ao serviço social, ao jornalismo, à sociologia, à antropologia, ao ser humano, enfim. podemos dizer também que o que sempre esteve posto é a destruição de um projeto civilizatório em contraponto à barbárie? é o que tem acontecido nos nossos ciclos de respiro? compartilho a sua angústia. todos os dias quando abro os olhos, meu estômago embrulha. sinto medo porque as forças do lado de cá estão em permanente disputa. minha coragem se esvai. me sinto só. às vezes, não tão só. o tempo não para e a gente vai...sempre vai. um abraço e dias melhores para todos nós.

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    1. obrigada pela leitura e por dividir comigo está angústia. É bom saber que não estamos sós. um abraço, Fernanda.

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  2. uma observação: sou absolutamente a favor das várias disciplinas que nos formam. creio que tanto a filosofia quanto a física, p.ex., são importantes (não da forma que sempre foram empurradas, mas em conexão as outras disciplinas e com a vida). enfim, todas dizem respeito à vida e, sendo assim, também ao ser humano. são definidoras do que poderemos estudar mais aprofundadamente lá na frente, além de nos dar uma forte base humana e profissional. o ideal é que não houvesse compartilhamento do conhecimento de forma cartesiana.

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