sexta-feira, 30 de junho de 2017

Sobre olhares, gatos e homens



O olhar propicia o enxergar nítido e um olho que realmente enxerga!

(E.T.A. Hoffmann in A janela de esquina do meu primo, 1822
tradução de Maria Aparecida Barbosa)




Meeting, instalação de Wang Shugang em Bamberg, por Sergia A.



Das minhas andanças aprendi que boa parte do encantamento das viagens está no olhar inaugural, no êxtase de ver as coisas pela primeira vez e dali iniciar um processo de conhecimento. Mesmo quando a paisagem já se tornou familiar por vídeos, fotografias, livros, postais e descrições de amigos há sempre uma novidade para o olhar que se desloca. Prestamos atenção em tudo porque o novo nos desperta. Apesar da noite mal dormida e de um dia inteiro entre subidas e descidas de ônibus e degraus, fui seduzida por esse olhar sobre Bamberg.

A luz do dia se apagava entre nuvens acinzentadas sobre a Schönleinzplatz quando uma instalação atraiu meu olhar pela estranheza. Sete homens moldados em fibra de vidro acocorados em círculo. As mãos sobrepostas diante de si em atitude de contemplação profunda, ou preparando-se para um salto. A depender do ponto de vista de quem lhes dirige o olhar. Intrigada, busco e descubro que se tratava da obra Meeting, do artista chinês Wang Shugang. A princípio uma instalação montada em Heiligendammi no ano de 2007 por ocasião da reunião do G-8, transferida anos depois para aquele local para saudar a passagem do Dalai Lama pela cidade. 

A chuva nos obrigou a permanecer no hotel, por sorte com um bar movimentado. Aproveito para sentar e dividir com novos amigos uma taça de vinho e uma aventura em um cardápio alemão. Escapamos pela imagem de uma tábua de frios e na universalidade da palavra baguete. Apesar do cansaço, com o céu menos ameaçador e a noite apenas começando decido caminhar por ruas estreitas e tortuosas que encantam as cidades medievais. Correr o risco de atravessar a ponte sobre o Werkkanal perseguida por jovens alegres, bêbados e assustadores na euforia de uma noite de sexta. Uma moça me olha com atenção e puxa assunto para desfazer minha má impressão. Tenta adivinhar minha origem sugerindo Espanha ou Itália. Respondo-lhe que sou brasileira e ela diz que ama o Brasil e que sonha conhecer este lugar exótico. Digo-lhe que seria bem-vinda e nos despedimos. Passado o susto, a conclusão óbvia de que jovens são jovens onde quer que seu espírito espontâneo esteja livre para se manifestar. 


o aspargo, por Sergia A.
a arte de ouvir, por Sergia A.
Sob a luz da manhã de sábado a cidade se revela inteiramente nova na vibração de cores que iluminam o aspargo no mercado verde. Ou, no gesto infantil de ajoelhar-se diante da música que preenche a praça. 


Ou, na batida do tambor que dá ritmo aos remadores alterando a placidez das águas do Regnitz

o tambor o remo o rio, por Sergia A.

Ou mesmo na monotonia dos telhados vistos do alto da colina em que se instalou a Domplatz. É nos degraus da Catedral de St. Peter e St. George, ao me dar conta do que me cercava, que desisto de descer e saborear a famosa cerveja defumada. Dou preferência a uma relaxante visita ao Rosengarten ao lado do Museu Histórico e à Staatsbibliothek (Biblioteca estadual de Bamberg) que desde 1965 está instalada no prédio da Nova Residência. O rico acervo guarda desde manuscritos da época do imperador Henrique II (por volta de 1007), preciosidades escritas e ilustradas por monges beneditinos do século XII, até fragmentos dos primeiros livros impressos em língua alemã. E, ainda, muito do que se produziu a partir do século XV com a invenção e avanço das máquinas de impressão em tipos. Mais recentemente, se acrescentou a obra e coleção particular do escritor, caricaturista, pintor, dramaturgo e compositor E.T.A. Hoffmann (1776-1822). Por pura coincidência foi sua figura com um gato sobre o ombro, esculpida em bronze e locada em frente ao teatro que leva seu nome, o último ponto que despertou meu olhar no fim daquele dia luminoso.


o gato o homem, por Sergia A.

No retorno ao hotel, ainda pensando no homem e no gato, descubro no alto da escada um dos homenzinhos vermelhos acocorados. Dizem-me que era o oitavo homem do círculo da instalação como proposta originalmente pelo artista, que havia sido alvo de "vândalos" ou de uma brincadeira sem graça de jovens em busca de emoção. Penso na liberdade dos meninos na noite anterior e no meu exótico país que aprisiona os seus em uma rede de desesperança. 

Antes de dormir pesquiso (o que seria de mim sem a internet?) e encontro nas palavras de Hoffmann um gato narrador (Reflexões do gato Murr, 1820). Sua ironia e veia humorística monta uma alegoria questionadora da realidade social e política em seu entorno. Encontro no seu último conto, A Janela de esquina de meu primo (1822), duas personagens vendo a vida normal de uma cidade pelo mesmo ponto de observação e, ainda assim, apresentando visões divergentes no alcance. Uma tem visão macro dos objetos, das construções e da multidão, a outra tem visão penetrante, invade o geral estático à procura de detalhes em movimento. E o diálogo entre as duas vozes, a partir da paisagem simples de um mercado e de uma praça, vai compondo uma ode à arte do olhar.

É assim que Hoffmann me ensina a ver o vermelho de Wang Shugang ganhando significados. De uma antiga referência cultural de seu país à felicidade, que viraria símbolo de opressão de um regime político, passa a marcar o retorno da incômoda presença chinesa ao mundo dos ricos. E, de repente, se transforma na leveza dos trajes de monges budistas tibetanos em sua luta pela paz. Tudo a depender do olhar, repito. Ou, como diria a voz que me guia, de um olho que aprende a enxergar.


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