terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Entre Dois Mundos



Stranger than Fiction (2006),  por Marc Forster
Fonte: YouTube

“Beijos escritos não chegam ao seu destino,
os fantasmas os bebem pelo caminho”
[1]


Última semana de 2011. Teresina adormece sob os trinta e cinco graus de temperatura enquanto suas ruas se esvaziam. Seus habitantes estão ávidos por mar, pela abençoada brisa do mar, pelo poder relaxante do cantar de suas ondas vencidas em sete pulos, pelas promessas de amor em barras rubras amanhecido. De longe escuto o rumor de seus passos. Pela primeira vez em muitos anos não sentirei sua água morna acordando mais um ano, mas posso sentir seu cheiro se fechar os olhos, ou participar de eventos pelo mundo se ligar meus brinquedos tecnológicos e me contentar com o não real, com a ficção da qual posso ser personagem ou autor.

No correr dos nossos dias, há momentos em que já não sei onde está a intensidade da vida. Se no mundo real ou no virtual, se o virtual é uma representação do real ou se o contrário é que é verdade. Se o que me dizem as mensagens eletrônicas prolixas em seu espaço reduzido, e sem olho no olho, é mais verdadeiro do que a concisão dos gestos comedidos entre palavras secas e olhares apressados.

Recorro à ficção para encontrar alento. É sempre possível sair dela com algo interessante. É assim que vejo, por exemplo, o filme do diretor americano Marc Forster, Stranger than Fiction (2006), Mais Estranho que a Ficção na tradução brasileira, que tem como tema central exatamente a oposição "realidade vs ficção". No seu desenrolar, o protagonista Harold se descobre personagem de um livro que está sendo escrito, ao ouvir uma voz que narra todos os acontecimentos das horas monótonas do seu dia. Toma conhecimento de que a vida do personagem está por um fio, e, para salvar a sua, procura ajuda psiquiátrica e em seguida de um teórico da Literatura. Com a ajuda desse descobre quem é a escritora, e que ela costuma matar seus personagens no capítulo final. Enquanto tenta mudar o fim da história segue o conselho do seu consultor literário e começa a viver, tornando mais humana a sua realidade.

O filme continua brincando e confundindo os espectadores com as oposições. Kay, a escritora dona da voz narradora, entra em choque ao saber que seu personagem é real. Os dois se encontram. Narrador e personagem deixam de ser elementos da ficção (do livro) para tratarem da vida real no filme. Por ser a criação da ficção (a escritura do romance) uma das ações do filme, esse gera propositadamente a dúvida: a ficção salva a realidade ou Harold não passava de um personagem fictício?

O alento que encontro no filme parece me dizer que ficção e realidade são partes de um todo. A realidade não se sustenta sem a imaginação que tece a ficção, da mesma forma que a ficção se alimenta da realidade para nos prender em suas tramas. Em uma trama bem real que também questiona essa dualidade, na carta de onde foi retirada a epígrafe que inspira esse texto, Kafka diz à sua amada que as cartas enganam até quem as escreve, são “um comércio com fantasma”. E acrescenta que o homem inventou a tecnologia (o telefone, o telégrafo, o aeroplano, na sua época) para criar “relações mais naturais”, no entanto “o adversário é tão mais forte”.
Hoje, mais modernos, fortalecidos e inseridos nos mais diversos meios eletrônicos, os fantasmas continuam bebendo beijos pelo caminho, mas como no filme,  deixam pistas que podem de alguma forma unir os elementos dessa ficção, dando novos significados a suas realidades descoloridas.


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[1] Franz Kafka in Briefe an Milena, 1952 (Cartas a Milena) – Publicação póstuma da correspondência entre Kafka e sua amante Milena Jesenská

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