sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O Chocolate Encontra Adélia


Pura Sedução,  por Sergia A.


 Nenhum pecado desertou de mim
Ainda assim eu devo estar nimbada,
porque um amor me expande.
Como quando na infância
eu contava até cinco para enxotar fantasmas,
beijo por cinco vezes minha mão.
Este é o meu corpo,
corpo que me foi dado
para Deus saciar sua natureza onívora.
Tomai e comei sem medo,
na fímbria do amor mais tosco
meu pobre corpo
é feito corpo de Deus [1]


Dezembro tem cheiro de encontro. São tantas as fragrâncias que não cabem em seus dias. Parece que todos esperam esse tempo de obrigação e se apressam por recuperar o não dito em onze longos meses. O mais interessante são as formas criativas encontradas para superar essa nossa dificuldade de dizer o que devia ser dito entre aromas de café da manhã.

Entrando nesse clima, participei essa semana de uma confraternização de mulheres que se dão o direito de perfumar suas palavras não ditas com a doçura do chocolate. Sem culpa. Pura sedução para escapar do automatismo. Puro prazer de estar juntas também em doces momentos que suavizam e religam nossas vidas fragmentadas.

Fui ao encontro do chocolate com a cabeça recheada de Adélia. Um pouco antes tinha terminado de escrever um artigo sobre sua publicação mais recente. A poeta mineira, do alto dos seus 75 anos, me surpreende e encanta com sua criatividade transgressora. Por isso o desejo de postar agora um trecho das considerações finais do meu artigo por entender que chocolate e poesia, com seus aromas e sabores intensos, alimentam o nosso sagrado direito ao prazer. Adélia sabe disso, e eu leio Adélia com devoção:

Parafraseando o crítico literário e poeta Carlito Azevedo em “Um Verso que nos Desampare”, podemos dizer que ler “A duração do dia” é se expor ao risco de uma emoção, ao risco de ser desamparado por um verso e de repente, de algum modo, ser restabelecido.

A emoção transmitida por suas páginas toca o leitor porque nasce de coisas que estão ao alcance da mão. Sua fonte está nos diversos fragmentos que compõem o dia, conflituosos ou pacificadores. De uma janela que se abre, de trancar-se no quarto, de contemplar uma imagem na Igreja, de uma memória de tempos difíceis, do tocar o seu próprio corpo ou de acompanhar suas mudanças, de sentir-se parte de Deus, do ofício de fazer versos, do seu olhar feminino costurando o mundo. Daí dizer-se que sua matéria é o universo feminino e sua linguagem subconsciente, embora esculpida por uma consciência que se sobrepõe.

O desamparo que nos retira do automatismo, tão próprio da arte, está na tensão gerada no interior dos poemas em versos que dizem o inesperado, que fazem analogias aparentemente impossíveis, que eleva o particular ao patamar universal, que busca no erótico a dimensão do sagrado, desestabilizando todas as certezas dos valores religiosos, morais ou sociais internalizados.

Para leitores atentos, o restabelecimento é sempre possível no final de cada poema pela sua natureza epifânica, explicada em “Esplendores” (p.88), que acende um “clarão inaugural que névoa densa/ faz parecer velados diamantes.” Uma luz que nos guia ao ser das coisas. Daí dizer-se que sua poesia é reveladora de uma metafísica do universo feminino, pois não se restringe à mera descrição de suas belezas ou infortúnios. Parte dele para encontrar o caminho da transcendência.

O universo feminino é o ponto de partida, é o olhar. A dimensão humana é o alcance das flechas lançadas pela firmeza de seu arco.

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1 Adélia Prado, NECESSIDADE DO CORPO  in A duraçào do dia (2010).

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