quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Para Linha Reta, a Leveza das Curvas



A Beautiful Mind (2001), by Ron Howard
Fonte: YouTube
Do fundo da inconsciência
Da alma sobriamente louca
Tirei poesia e ciência,
      E não pouca
Maravilha do inconsciente!
Em sonho, sonhos criei.
E o mundo atônito sente
Como é belo o que lhe dei.
[1]


Além das lendas, vagavam pelas ruas adormecidas do lugar onde eu nasci figuras quixotescas que enchiam minha infância de temores. Prenhes de histórias nos envolviam nos férteis labirintos de suas mentes desconectadas daquilo que chamamos realidade. Deve vir daí a minha necessidade de sentir o pulsar do chão depois de acompanhar vôos insólitos. Ou talvez, a compreensão de que uma vida de lucidez comporta momentos de fuga, necessários para que não haja inversão da ordem.

Estridente, o telefone toca no meio da noite. Entre soluços ela me diz que arruinou a vida das pessoas que amava e por isso está sendo perseguida. Existe uma investigação sobre seus crimes. Escuto silenciosa a sofreguidão da sua voz. Há uma pausa. Tento dizer alguma coisa que estimule a continuidade do relato. Peço que respire devagar, e repita algumas palavras. Ela me interrompe ao ouvir batidas na porta. Diz que são os vizinhos prontos para denunciá-la por violação da moral e dos bons costumes. Digo que não ouço as batidas da porta. Ela insiste que estão cada vez mais fortes. Ouve sirenes. Não consigo ouvir o som ao fundo da nossa conversa. Convenço-lhe a não abrir a porta. Esforço-me para manter na voz o tom de serenidade que tende a se ausentar. Faço perguntas. Falamos de outros tempos. Deixo-me envolver na ameaça dos seus moinhos de vento. A voz agora é sonolenta. A química a traz de volta à solidão dos seus lençóis. Desligo.

O meu sono decide dar voltas ao longe. Tempo suficiente para ligar a TV e recorrer às exibições repetidas de filmes de sucesso. Por coincidência, era a vez do premiadíssimo A Beautiful Mind (2001), Uma Mente Brilhante na tradução brasileira. Fugindo das polêmicas discussões de não fidelidade à biografia do matemático John Nash, o entendemos como uma bem elaborada ficção que tem fatos verídicos como base. Há no mínimo que se reconhecer o valor da direção de Ron Howard, que fazendo uso de uma câmera subjetiva, em boa parte do filme, induz os espectadores a ver as ações sob a ótica delirante do personagem principal.

Usando a terminologia de Bakhtin, poderíamos dizer que o Diretor, ao alternar pontos de vista, tem um excedente de visão capaz de permitir o embate entre o mundo dos ditos "normais" e o mundo do "delírio", além do desafio à percepção de quem assiste. Apenas os espectadores atentos captam, antes da metade do filme, os sinais de que acompanham uma realidade paralela criada pela mente de John. Seu amigo Charles sempre presente, a garota que “não cresce”, o agente do FBI e o trabalho de decifrar códigos fazem parte desse mundo irreal, ajudando-nos a compreender como funciona a mente que não consegue distinguir realidade e devaneios. Até mesmo o tão criticado uso da narrativa tradicional, conservadora, parece fazer parte desse interessante jogo com o espectador, como se fosse a forma necessária para não levantar suspeitas.

Durmo. Acordo revigorada com o sol aquecendo minha janela. Sinto o pulsar do chão sob meu pés preguiçosos. Um dia de lucidez me espera. No trabalho conto histórias sobre os loucos que povoaram a minha infância, para ilustrar a necessidade de contrabalançar linhas retas com a leveza das curvas. As pessoas não acreditam, acham que é ficção. Que seja, fica o pensamento e o verbo propondo novas visões de mundo.



[1] Fernando Pessoa in O Horror de Conhecer (Segundo tema), X.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada pela visita! Volte sempre.