sábado, 19 de maio de 2012

Círculo Ardente



Les uns et les autres, por Claude Lelouch (1981)
Fonte: YouTube


A alma ativa e obcecada
enrola-se infinitamente numa espiral de desejo
e melancolia
Infinita, infinitamente...
As mãos não tocam jamais o aéreo objeto
esquiva ondulação evanescente
Os olhos, magnetizados, escutam
e no círculo ardente nossa vida para sempre está presa
está presa...
Os tambores abafam a morte do Imperador.[1]




Como muitas pessoas nascidas do lado de baixo do Equador, posso dizer que conheci Bolero de Ravel pelo cinema nos anos 1980. Não vi o filme Les uns et les autres, direção e roteiro de Claude Lelouch (Retratos da Vida, na tradução brasileira) em salas de cinema, claro, eu moro em Teresina. Mas alguns anos depois tivemos o boom dos vídeo cassetes (bendita tecnologia, eu vivo para bendizê-la). Sabe aqueles de quatro cabeças comprados na Zona Franca de Manaus? Pois é, tive a felicidade de ter um. Talvez ao mesmo tempo em que a maternidade me despertava o interesse pela arte da dança. Bom, mas o certo é que a arte de outro Maurice, deixou em mim as marcas da música já associada à dança. Agora, tantos anos depois me chega, em uma sala de aula, a oportunidade de ler o Bolero de Drummond de uma forma nova. De arrepiar, pensei...

Embora diferenciadas pela autonomia na forma de expressão, nenhuma arte possui exclusividade sobre seu domínio. Interagem com freqüência como se estivessem à procura da unidade perdida. Assim é que separados pelo tempo, Ravel, Drummond, Bèjart, e Lelouch são tocados pelo mesmo sentimento que antecede as notas musicais, a palavra, os passos cadenciados ou a imagem em movimento. Composto como um simples estudo de orquestração em 1928, o Bolero tem um único ritmo e uma melodia que é uniforme e se repete em diferentes escalas. A sensação de mudança percebida está na entrada dos diversos grupos de instrumentos em cada variação do mesmo movimento sob o ritmo constante da percussão, formando uma dinâmica envolvente que os músicos chamam de crescendo.

Pelos anos 1940 é a vez do poeta. Ouviu a música e a associa a um tempo de desencanto. Como o tema na composição musical, no poema a alma está presa em uma espiral infinita, repetindo-se infinitamente em seus desejos crescentes e na melancolia por não alcançar o objeto desejado. 1961 é o tempo do coreógrafo. Se leu o poeta, não se sabe. No entanto, sentiu a música e imagina um corpo preso em uma espiral de movimentos repetidos infinitamente. Os pés são marcados pelos tambores (não à toa o formato do elemento cenográfico que dá destaque ao solo), enquanto tronco e membros superiores executam a melodia crescente. Mas na coreografia o movimento insiste em sobreviver, tem propulsão para a vida, daí o traço do erotismo.

Vinte anos depois é a hora do cineasta. Se leu o poeta, não se sabe. Mas, é certo que ouviu a música e viu o ballet. Numa espécie de Gesamtkunstwerk (obra de arte total), imaginada por R. Wagner para a ópera, o filme reúne a música, a dança, a arte dramática, o canto, e a fotografia para costurar um mundo dividido na trama ou fora dela. Como na música, no poema e na coreografia, na narrativa fílmica o tema se repete no drama vivido por seus personagens em tempos diversos (de 1937 a 1980) e espaços distintos, e encontra na repetição o movimento espiral que unifica o mesmo sentimento.

O desfecho desenhado para o filme é revelador da compreensão da arte como linguagem universal, retomando da música e da dança a busca pela superação do desencanto do poema para alimentar o crescente da esperança. Autônomas, como os instrumentos da orquestra imaginados por Ravel, as artes vão se congregando na narrativa fílmica, proporcionando ao espectador a percepção de uma unidade viva que sonha escapar do círculo ardente denunciado pelo poeta.
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 1. C. Drummond de Andrade, Bolero de Ravel in Sentimento do Mundo, 1940


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