quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Toque inevitável


Tocável,   por Sergia A.


As viagens sempre foram, para nós, investimento. Valiam e continuam valendo qualquer sacrifício. Depois de desvendar as diferenças regionais deste país continental, sentimos necessidade de ir mais longe. Foi assim que estivemos em Londres em dezembro de 1995. Elas, crianças, riam de tudo. Eu amedrontada, cismava do mesmo tudo. Sob o peso dos casacos, meus ossos tremiam. As botas de couro maltratavam meus pés habituados à liberdade das areias mornas. Elas, em seus tênis coloridos, deslizavam livremente sobre a novidade da neve.

O hotel simples ficava próximo ao Regent Park, o que facilitava muito a minha vida. Sem grandes programações nos permitíamos andar, despreocupadamente. Sentir o clima das ruas, o cheiro do novo. De vez em quando seguíamos um roteiro turístico curto. O prazer delas estava em primeiro lugar. Os monumentos passando e as figuras nas ruas era o que mais prendia a atenção. Ele negro, dread nos cabelos. Ela branca, pierces e correntes do nariz à orelha. Ele vestia uma túnica clara. Elas com véus escondendo os cabelos o seguiam poucos passos atrás. Yuppies, em ternos bem cortados, nos atropelando em sua pressa. A sonoridade das línguas orientais provocando ondas de risos intermináveis. O diferente existe e precisava ser visto, de perto, sempre que possível. Essa era a intenção.

Essas imagens, entrelaçadas com as de outras viagens que se sucederam, me retornaram, dezessete anos depois, ao caminhar sob as bandeiras multicoloridas de Oxford Street, um pouco antes dos Jogos Olímpicos. E novamente, quando, já em casa, assisti ao espetáculo de encerramento das Olimpíadas. Sob os efeitos da tecnologia do nosso tempo, o jogo bicolor das listras da bandeira do Reino Unido se preenchiam de múltiplas cores acompanhando a entrada das delegações. Havia uma obvia intenção. O recado estava dado. A Londres, cuja xenofobia matou o imigrante brasileiro Jean Charles, assume, no discurso, seu multiculturalismo como tábua de salvação.

Agora todas elas estão novamente diante de mim quando, fugindo do calor de Teresina, consigo ver Intocáveis (Intouchables, 2011), em sala de cinema. Antes de ver o filme, li a crítica de José Geraldo Couto no blog do IMS, em que ele tenta explicar a estrondosa bilheteria alcançada no país de origem (França) e nos demais países europeus onde foi exibido. Para o crítico, o uso competente de antigas fórmulas (baseado em fatos reais, superação como tema, etc) se une à “sintonia com sua época”. Conclui com uma sagaz associação das personagens centrais (um tetraplégico branco milionário e um marginalizado imigrante negro africano) com a atual situação da Europa (rica, culta e paralisada/impotente) em relação aos imigrantes (pobres, incultos e repletos de vitalidade/criatividade). Concordei mas, sai do cinema intrigada com o título.

Intouchables, por Eric Toledano e Olivier Nakache (2011)
Fonte: YouTube

A associação de tantas imagens ainda não era o bastante. Junta-se, agora,  as que surgem do discurso sensível e irônico, observado nas poucas páginas a que tive acesso, da autobiografia de Philippe Pozzo di Borgo. Explicam e sugerem questionamentos audaciosos. Segundo o autor, o título do filme que é diferente do título do livro (Em português: O Segundo Suspiro + O Cão Guardião ) nasce da compreensão da essência de sua obra: o sentimento dos excluídos. Do imigrante intocável (repulsivo, como um dalit no sistema de castas Hindu), e do tetraplégico intocável (insensível ao toque, protegido em sua gaiola dourada). São percebidos e percebem-se como intocáveis, no entanto rejeitam a aproximação por piedade. Sem máscaras, completam-se em suas diferenças e necessidades. Daí o respeito e a admiração mútua. Seria essa a visão necessária para o equilíbrio das desigualdades?

Aliás, qual é mesmo a origem da desigualdade econômica? Se uma reparação parece utópica, um novo olhar parece ser inevitável.

2 comentários:

  1. nossa! só pelo trailer do filme já me senti encorajada a fazer o diferente...

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