sexta-feira, 7 de março de 2014

O corpo que sou

Existe alguém em nós
Em muito dentre nós esse alguém
Que brilha mais do que milhões de sóis
E que a escuridão conhece também
Existe alguém aqui
Fundo no fundo de você de mim
Que grita para quem quiser ouvir
 
(Caetano Veloso in A luz de Tieta)

Nu deitado, Di Cavalcanti
Óleo/madeira 82 x 100 cm (1930/1935)
Fonte:  site do Museu Castro Maya - Rio de Janeiro



Nasci em meio a mulheres extremamente fortes. Reza a lenda que, dentre elas, fui a única a vir ao mundo com assistência de um médico. De qualquer modo, havia no quarto uma parteira e outras mulheres para dar garantia. Uma tomou-me no colo e derramou sobre meu pequeno corpo o primeiro cuidado. Com a ausência da figura paterna, fui educada para ser forte. O manto e o alimento chegavam por mãos femininas. E isso era tudo. O ser forte se estendia da independência financeira à fronteira dos afetos. A posse do próprio corpo, por exemplo, ali não tinha lugar. Não escapava à construção cultural do espaço e do tempo. Ser forte era preservá-lo para uma abençoada proteção masculina.

Descubro tempos depois que ser forte também significa desconstruir, sempre que necessário. Sim, eu sou um corpo. E pensar o corpo como domínio do eu, surge como necessidade quando vejo na mídia a repercussão sobre o caso das camisetas com apelo sexual, fabricadas pela Adidas para a Copa 2014 e postas à venda pelo seu braço Americano. Do caldeirão de discursos moralistas, saltam palavras e pontos de interrogação para instigar minha mente. O que a estampa diz sobre nós (mulheres brasileiras)? De onde vem mesmo essa imagem que tanto nos incomoda? 

Parece certo que há uma propensão natural do ser humano para produzir imagens, ou outras linguagens, sobre o real por ele categorizado. Como um retrato que embora pareça o real, é, de fato, uma representação do olhar do artista. O que não faz parte da sua cultura é para o outro, exótico. Causa repulsa ou atrai. Como foi a nudez das mulheres indígenas ou a exuberância das mulheres negras, aos olhos dos colonizadores. Ou, a exibição da sensualidade de corpos bem cuidados nas praias dos nossos dias, aos olhos dos visitantes. O olhar do outro reproduz representações fragmentárias uma vez que o eu (dono do corpo) não tem voz na imagem criada e divulgada por esse olhar.

Parece certo também que a exploração sexual (que é crime por essas bandas) seja prática antiga e corriqueira, aqui e em muitos outros lugares do mundo civilizado. Reflexo de graves problemas sociais, do descaso com a educação que emancipa, ou simplesmente da disposição consciente de fazer do corpo moeda de troca. O interessante é que há sempre uma cumplicidade. Não há explorado sem explorador. Se um corpo se vende, o outro o compra. E aqui retorna a questão da leitura do outro sobre a nudez do corpo feminino, que para os trópicos se faz natural. Ser forte era aprender, desde cedo, a negar essa naturalidade. Não despertar o olhar. Impunha-se ao corpo feminino a culpa pelo olhar “pré-conceituoso” ou atitude criminosa do outro.

Sim, eu sou forte. Sim, eu sou brasileira e meu corpo é o lugar onde o eu que sou se materializa. Ser forte parece ser, ainda, aprender que existem formas diferentes de se relacionar com o corpo. Sob meu domínio, ele se submete à minha decisão do sim ou do não. Seja cobri-lo com uma burca por um ato consciente de fé ou, desnudá-lo sob a luz que aquece o meu país. Nessa aldeia de muros baixos e tetos de vidro, em um tempo em que corpo e alma já não se separam, há que se acrescentar ao olhar uma nova lente. Aquela que aprende a respeitar diferenças. Só ela será capaz de nos levar ao ser que dentro, bem lá dentro de um corpo, brilha como milhões de sóis. Um bom tema para o 08 de março, não?

 
Fonte: YouTube


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