quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A Imperfeição Nossa de Cada Dia


Barney's Version (2010), por Richard J. Lewis
A Minha Versão do Amor (na tradução brasileira)
Fonte: YouTube

Minh’alma, como o oceano,
Tem tufões, correntezas,
E muitas lindas pérolas
Jazem nas profundezas.[1]


Há algum tempo recebi do jornaleiro, entre as remessas semanais que ele gentilmente me faz, uma revista cuja matéria de capa me prendeu a atenção pela chamada em letras brancas sobre fundo vermelho: “O passado é uma prisão”. Por coincidência, dias depois vi na TV uma entrevista do astrofísico Marcelo Gleiser em que ele falava do tempo como uma ferramenta inventada pelo homem para medir as transformações de si próprio e da natureza ao seu redor. Não pude deixar de associar essas definições ao ver o filme Barney`s Version (2010), ou A Minha Versão do Amor na tradução brasileira.

O conteúdo da matéria de capa era bem mais restrito do que o título sugeria. Tratava da nostalgia ou apego doentio a acontecimentos passados que acomete algumas pessoas, ou todos nós em algum momento, impedindo aqueles que se perdem em suas armadilhas de avançar rumo ao melhor da vida que é simplesmente viver o tempo presente. De qualquer forma, não há como fugir das experiências vividas, das transformações que acumulamos ao longo dos anos, ou daquilo que convencionamos chamar de tempo passado. O encarceramento, no entanto, talvez dependa menos dos fatos vividos do que da forma como a narrativa desses fatos é construída, a partir de uma visão que é unicamente nossa. É precisamente o ponto de vista de um anti-herói sobre o passado que o diretor canadense Richard J. Lewis traz às telas em um filme dedicado ao escritor também canadense Mordecai Richler, morto em 2001. Como no livro Barney`s Version, de autoria do homenageado, que o roteiro toma como base, o protagonista boêmio, fumante e politicamente incorreto, aos sessenta anos, narra de forma irônica e com a dose certa de humor os tropeços, os dilemas e os acertos de uma vida um tanto desajustada mas que se aproxima dos atropelos nossos de cada dia. Daí a simpatia que suas imperfeições despertam no espectador.

O filme traz, ainda, outras referências literárias que vão além da adaptação e nos ajudam a compreender o universo das personagens e abstrair um significado. A pista de uma delas está presente na cena do trem quando Mirian, a mulher que viria a ser a terceira esposa e o grande amor da vida do protagonista, lê o livro Herzog de Saul Bellow (mais um canadense) no qual o personagem principal, judeu e neurótico como Barney, entra em crise quando sua segunda esposa o trai com seu melhor amigo. No filme um fato semelhante é a redenção e o infortúnio de Barney: uma oportunidade de por um ponto final no segundo casamento, mas ao preço de perder o melhor amigo e conviver com a acusação de um crime que nem ele mesmo tem certeza de não ter cometido. Outra é a cena que antecede a morte do melhor amigo, quando Barney exige que ele testemunhe a seu favor no processo de divórcio provocando uma discussão na qual o amigo sugere que ele leia “A Vida de Heinrich Heine”, o poeta judeu alemão por muitos descrito como estranho, triste, sarcástico e ambivalente cuja visão das contradições humana inspira este texto.

Narrar talvez seja, portanto, um exercício de compreensão de si mesmo e do mundo que o cerca. Heine, no século XIX, a partir de suas próprias contradições encontrou na narrativa sarcástica o tom para tecer uma crítica aos rumos da sua cultura e sociedade, assim como Richler encontrou na auto-caricatura uma narrativa irônica para desnudar o homem contemporâneo em seus dilemas éticos, ou Bellou por meio de seus personagens desajustados encontrou uma narrativa tragicômica para descrever a busca por um humanismo contemporâneo. Fica no fim do filme que dialoga intensamente com tais narrativas a amarga certeza de que a perfeição não cabe a nós, tolos seres humanos, mas que há um caminho quando o olhar para o passado é um ato libertador que permite no presente encontrar pérolas sob tufões e correntezas.


[1] Heinrich Heine, tradução de Manuel Bandeira

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