terça-feira, 16 de agosto de 2011

A Primeira Parte: o Laboratório

Cena do filme Hanami - Cerejeiras em Flor, de Doris Dörrie

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo[1]

Vistosa, insinuava-se de longe. Ainda criança, vi um irmão enveredar por seus caminhos. Jovem, plena de certezas, vi uma irmã nela encontrar rumo novo para a vida. Quando incertezas sacudiram o coração, o acaso me apontou a porta. Segui o chamado. E lá se foram 29 anos de vida da empresa e da minha se mesclando, se bendizendo e se amaldiçoando. E de repente me vem este ar nostálgico quando inicio um tempo de preparação para o desligamento.

O antídoto está na palavra escrita que tem sobre mim um efeito mágico. Aprendi a recorrer ao seu pó de pirlimpimpim sempre que a realidade resolve me chacoalhar ou dar seus saltos. É ela, em seus delírios de sons e imagens, que me transporta para qualquer tempo e lugar e me devolve pronta para o tatame ou para o palco. Foi ela que me retirou da angústia de não pertencer ao mundo para o qual eu vendia horas preciosas do meu tempo. Foi por ela que um dia acordei acreditando que havia um sentido em estar ali, que tudo não passava de um laboratório onde as experiências aconteciam sob olhares atônitos.

Em atenção à provocação da palavra me vêm à memória os primeiros experimentos, ainda em 1982, quando lidava diariamente com motoristas de táxi agraciados com uma linha de financiamento de carros a álcool, atendendo uma política econômica do governo federal. Ali trancafiada entre paredes cinza, protegida de sol e chuva, apartada bruscamente da rebeldia com causa da minha juventude, ouvia histórias que recendiam o suor forte das ruas. Lentamente, por meio da palavra mais do que por números, me descobria não ser nada. Apenas uma peça na grande engrenagem que negocia sonhos que só o capital é capaz de prover.

O laboratório em que tais experiências se processaram em um tempo que hoje chamo primeira parte da minha vida se fez presente ao ver o filme Hanami – Cerejeiras em Flor (Alemanha, França 2008) em que uma diretora alemã, Doris Dörrie, se utiliza de dois preciosos símbolos da cultura oriental, o festival de cerejeiras japonês e os movimentos da dança “Butô”, para retratar um mundo onde a vida se perde pela falta de lucidez na percepção dos acontecimentos a seu redor. Tratando dos inúmeros dramas da pós-modernidade entre eles a proximidade e falta de comunicação, o filme de forma delicada leva à reflexão sobre como a vida pode ser intensa em seu tempo finito, quando tomamos consciência de que nada somos além dos sonhos que nos alimentam.


[1] Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) in Tabacaria, 1928


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