quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Filhas do Sol do Equador


Há urubus no telhado
e a carne seca é servida
um escorpião encravado
na sua própria ferida
não escapa só escapo
pela porta da saída
[1]


Acabo de ler, com atraso, as notícias sobre o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Uma conceituada revista semanal traz em destaque o Piauí como “A zebra do ENEM” por ter conseguido emplacar duas escolas particulares entre as dez melhores no exame. O conteúdo da reportagem é inquestionável e merece reflexão pelas autoridades, uma vez que de forma apropriada fala do grande fosso que existe, aqui e em todo o País, entre o nível de educação oferecido pelas escolas privadas e o nível das escolas públicas. O que incomoda, entretanto, é o tom pejorativo da manchete.

A escolha do termo “zebra” pode aqui ser entendida como desinformação da jornalista, pois as escolas citadas vem já há alguns anos sendo classificadas entre as melhores do país, portanto um resultado já esperado; ou, como a confirmação de que para a mídia produzida nos grandes centros parece fazer mal falar bem do estado mais pobre da federação, ou seja, quando a notícia é boa tem que ser tratada como uma aberração, algo que não podia acontecer.

No entanto, nascer no Piauí tem lá suas vantagens. Uma delas é que desde cedo aprendemos o valor da auto-estima, que precisa ser construída e fortalecida para servir de escudo, o que nos torna capazes de enfrentar as batalhas da vida onde quer que elas se apresentem. Superada essa fase, a nossa tarefa, além de lutar pelas transformações que precisam acontecer, é, então, exigir com ternura que nossos feitos sejam vistos retirando-se a máscara do preconceito, que, como num ciclo vicioso, contribui para a manutenção do estado de pobreza que o gera.


Esse incômodo me fez lembrar um episódio ocorrido em 2009, que nos entristeceu por perceber que uma filha do sol do equador, tal qual o escorpião encravado na própria ferida, alimentava absurdamente essa visão caricaturesca, em troca de alguns minutos de fama. A reação foi natural e instantânea, e agora a publico:



A Escolha de Dadá


Em uma dessas noites mornas de outubro, passando os canais de TV para chamar o sono, deparei-me com uma comediante sendo entrevistada no Programa do Jô. A figura carregava no sotaque e no linguajar para se fazer reconhecer nordestina, dizia ser piauiense de Floriano e se chamar Dadá. Para arrancar aplausos da platéia dizia ainda ter conseguido o grande feito de se “deformar” em jornalismo, em outro estado, em conseqüência da fuga das três únicas opções oferecidas às moças que por fatalidade do destino nasciam nas bandas de cá: ser “secretária” de vereador, ficar grávida para forçar o casamento ou trabalhar no Armazém Paraíba.


Despertou-me curiosidade a história da origem, da família numerosa e das dificuldades de sobrevivência, que marcou o destino de Dadá pela semelhança com a minha e de tantas outras mulheres nascidas nestas bandas periféricas, distantes do grande centro dito único produtor de riquezas, de cultura e de grandes oportunidades. Como Dadá o acaso também me fez nascer no interior do Piauí, em uma família de onze filhos, dos quais sete mulheres. Como tantas outras mulheres que por aqui conheci, o acaso também nos ofereceu orfandade e pobreza. No entanto, no interior do Piauí, o acaso me fez encontrar uma escola da comunidade e ter uma mãe que, sem estudos, mas de espírito altivo nos incentivava a superar sua história de mulher nascida na segunda década do século XX, condição não apenas de piauiense ou nordestina.


Na escola, como tantas outras meninas da minha idade, fomos abençoadas pela graça de ter uma professora amante da língua portuguesa, que nos apresentava, por puro prazer, o mundo da poesia e exigia de nós redações semanais. As melhores iam para os murais nos corredores elevando a auto-estima de seus pequenos autores. Havia também os concursos de declamação de poemas. Vejam que forma mais inteligente de preparar nossos ouvidinhos sujos para a sonoridade e entonação poética, ou quem sabe apenas nos despertar, por meio da imaginação, para o fato de que a vida era maior que a nossa triste realidade local. Pasmem! Tudo isso no interior do Piauí no fim da década de 1960 e inicio da década de 1970, numa escola onde praticamente todos os filhos do lugar passavam por seus bancos, menos os que tinham condições de estudar nos bons colégios nas capitais mais próximas ou os que, como Dadá, faziam a escolha, também louvável, de aventurar-se em centros mais distantes.


Não tendo o direito de julgar, esforço-me para compreender a escolha de Dadá no que diz respeito ao uso do humor debochado e preconceituoso para sobreviver ou ter minutos de celebridade. Entretanto, minha história como de tantas outras mulheres que conheci no Piauí, comprova que existe vida além do sucesso a qualquer preço. Das sete irmãs, nenhuma escolheu as três opções citadas. Como mulheres do nosso tempo, enfrentamos livremente o mundo com suas oportunidades e dificuldades, sacrifícios e recompensas. Com casamentos bem resolvidos ou desfeitos nos garantimos na educação dos filhos e no refazer da vida. Como servidoras públicas concursadas ou profissionais com formação em universidades publicas locais aprendemos que deveríamos nos esforçar para dar sempre o melhor. E, principalmente, nos alegramos em dar exemplo a uma nova geração de mulheres capazes de ter orgulho de sua condição e por isso contribuir para engrandecê-la.


Dadá e nós tivemos sim condições miseráveis na origem, da mesma forma que outras tantas meninas ainda as tem, infelizmente, aqui ou na periferia de São Paulo, do Rio, de Londres, Nova York, Paris, ou outro grande centro. Além da aceitação óbvia de que, talvez, a diferença nas escolhas esteja no padrão de educação que precisa atingir seu objetivo de promover o crescimento humano, arrisco dizer que há algo determinante que parece passar pela pobreza ou riqueza sim, mas de espírito.


(Escrito em Nov/2009)

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[1] Torquato Neto – poeta piauiense - in Todo dia é dia D

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