sábado, 24 de setembro de 2011

Sobre a Sombra e a Luz


Musica:  Angélica por Chico Buarque
Imagens:  filme Zuzu Angel (2006) por Sérgio Rezende
Fonte: YouTube


Na noite imensa
Tudo em volta adormece
Menos tua ausência.[1]



Honestino Guimarães... Honestino Guimarães... Quatro mil estudantes silenciavam. Um silêncio ensurdecedor intercalava as chamadas que uma voz grave e delicada fazia ressoar no microfone. Um arrepio me subia pelo corpo a cada nome pronunciado. Eram nomes de estudantes como eu, com a diferença de que arbitrariamente lhes fora tirado o direito de estar ali e viver aquele momento. Isso me vem à mente agora quando tomo conhecimento de que o Congresso Nacional aprovou a criação da Comissão da Verdade. Em que pese as críticas à sua formação e autonomia, não deixa de ser um caminho para a restauração da verdade histórica e um alento aos que nesta luta inglória perderam o(a) filho(a), o marido, a mulher, o pai, a mãe, o(a) amigo(a).

Tudo parecia muito confuso. Minha cabeça rodopiava diante de tanta novidade. Mais do que sala de aula, laboratórios e professores, a universidade era aquilo. A única palavra que me vem à mente para associar às imagens que se formam para dar conta do que foram aqueles anos é efervescência. As idéias como líquido na fervura borbulhando sob pressão. Oriunda de uma formação rigorosamente religiosa numa pequena cidade do Piauí, onde o contato com o mundo chegava por meio da Voz do Brasil ou dos programas de TV censurados, aquilo tudo era por demais instigante. Curiosa, mergulhei. De repente um dia, depois de longas horas de estrada, estava lá entre estudantes de todo o país vivenciando o histórico momento de reestruturação da UNE em seu XXXII Congresso em Piracicaba-SP.


Como milhares de jovens, eu vestia uma camiseta que me identificava com o grupo ao qual minhas idéias se afinavam. A esquerda brasileira, vivendo na clandestinidade, se dividia em inúmeras facções com diferenças às vezes muito sutis embora seus líderes fizessem parecer abissais. A divisão se refletia no movimento estudantil que tentava se articular, emergir dos guetos e retomar a luta pela redemocratização do país naquele momento em que a ditadura agonizava. Em meio às tumultuadas votações fui ao banheiro do ginásio. Apressada, enquanto lavava as mãos, ouvi uma voz que me pedia prá ver o desenho da minha camiseta. Levantei a cabeça e vi duas senhoras que me olhavam com interesse. Não me disseram nada, apenas se olharam e confirmaram ser aquela a tendência dos seus entes queridos por quem há muito lutavam para ter no mínimo o direito ao luto.

Três décadas depois, o mesmo arrepio me visita ao ler o atestado de óbito de Honestino Guimarães, emitido 23 anos depois do seu desaparecimento, e publicado no site que o homenageia. O documento informa hora, local e causa mortis ignorados, revelando o não esclarecimento das circunstâncias de sua morte após ser preso pelo Centro de Informações da Marinha em 1973. Aquele mesmo arrepio me corre a espinha quando ouço a canção de Chico Buarque para Zuzu Angel, mártir e ícone dessa busca pela verdade, cuja biografia virou filme em 2006.

Como mãe e avó, sinto novamente um arrepio a correr pelo meu corpo sempre que imagino a dor e a angústia daquelas senhoras que buscavam alento em meio aos meninos parecidos com os que um dia não mais retornaram aos seus colos. Partiram por desejarem um mundo melhor, e por terem sido impelidos a lutar pela sua causa com as armas que o inimigo exigia. Institucionalizar a busca por esclarecimento parece ser uma forma de estancar o sangue e as lágrimas dessa página da nossa história. Parece não haver dúvidas de que quanto mais luz se jogar sobre a sinuosidade desse vale de sombras menos chance ele tem de voltar a ser um caminho trilhável.
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1 Sergia A. (2011)

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